Um microconto e duas crônicas de Carol Farias
Carol Farias possui os medos necessários para constituir-se enquanto ser medíocre. Aplaca por alguns instantes a claustrofobia através da escrita, libertando as palavras presas na mente e no coração. Às vezes concorda com a vaca de pelúcia: a vida é uma piada de mau gosto. Adora coxinhas, apesar da gordura atacar o seu fígado e o tempero industrializado fornecer ingresso para a alergia. Ri dos próprios tombos até chorar ou chora até rir… ou não… Carol Farias adora o Caetano.
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Reeducação alimentar
Rio do Tiroteio de Janeiro, 25 de agosto de 2019.
Querido Cachorro Quente com Salsicha Cortada em Rodelas Ultrafinas e Molho Ralo Produzido a Partir de Sachê de Molho de Tomate de Marca Desconhecida,
Estamos bem, fique tranquilo. As cinzas dos corpos e da floresta amazônica ainda não nos alcançaram. Tenho a sensação de que o sangue paira no ar, porém esse treco de sensação/intuição é coisa da petralhada esquerdista, como você diz. Lembro de ter visto uma postagem recente sua informando que esses esquerdistas financiaram as queimadas com dinheiro pago pelo contribuinte, através de ONGs, só que nem é tanta queimada assim, como a psicose ambientalista propaga, as imagens da NASA, por exemplo, tudo fake news, provavelmente foram retiradas de algum filme catastrófico desses daí. Mas deixemos isso de lado, pois o meu objetivo com esta carta é lhe contar que iniciei uma proposta de reeducação alimentar. A nutricionista mandou cortar os desaforos. Agora você veja: desaforos! Não posso sequer ingerir os desaforos de fabricação própria. Eu disse a ela:
– São orgânicos!
Mas nem assim ela liberou… Afirmou que desaforos são hipercalóricos, porém eliminam ao invés de fornecer energia, são uma espécie de gordura que se aloja no coração. Pasme, parecem tão perigosos quanto os mais de 200 agrotóxicos liberados pelo governo. Por isso, devolvo a remessa de desaforos que você enviou no último final de semana, com aquela cobertura maravilhosa de palavrões primários, aos quais nem me demorei a olhar para não cair em tentação. Imagina o perigo se eu não resisto e fico com todos para mim?!
É questão de saúde, não de desfeita. Afinal, sou educada e jamais te deixaria sem a resposta que você merece. Sem alternativas, vejo-me forçada a dizer que a nossa relação acaba aqui. Entenda que não é você, sou eu. Eu mudei e estarei percorrendo caminhos nos quais você não poderá me acompanhar. Desejo que resista. Não devore todos os desaforos, por mais suculentos que pareçam. Foi eterno enquanto durou…
Com sinceros votos de saúde e felicidade,
Crepioca
P.S.: Ao colocar os desaforos na caixa, tive uma certa dificuldade para fechá-la, tipo quando desdobramos uma blusa na loja e o inferno está armado. As tentativas de deixá-la igual ao que era antes das suas mãozinhas de trapo encostarem nela são traduzidas em mangas caídas, gola desbeiçada e o vinco horrendo que só sairá depois de passar a peça. Dadas as circunstâncias, peguei o “feminista” e o “metida a intelectual” e comi (depois de consultar a nutricionista, é claro!), porque se analisarmos a composição e isolá-los dos demais, veremos que não representam nenhuma ofensa ao organismo.
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Fatos notáveis de uma caxícara ou xicaneca
No relatório dos inspetores de polícia da província do Rio de Janeiro havia uma seção interessante chamada “Factos Notaveis”. Era uma seção que me lembra um jornal atual ao qual não direi o nome, pois podem me processar assim como a Wilard fez com o Panturrilha. Não que o jornal em questão em algum momento leria meu texto. Talvez eu o deixe no conforto da minha gaveta com tantos outros, mas se o seguro morreu de velho e sem se aposentar, quem sou eu para contestar os ditos populares.
Voltando à seção “Factos Notaveis”, nela encontraríamos desde assassinatos escabrosos, loucos em surto, suicídios, roubos, acidentes, cuja mão zombeteira de um sei lá o que estaria operando, e fatalidades. Tantos casos surreais que assim os digo por falta de um adjetivo que os contemple de fato.
Hoje um fato notável que se deu na cozinha foi o estalar e planar de uma das partes de um pires integrante de um conjunto de jantar. Pedi explicação dos amigos físicos ou exorcistas e descobri que a culpa se deve ao meu apego ao uso de velas repelentes em pires no chão frio ao invés dos repelentes elétricos tão mais práticos. Eu havia elegido aquele pires para ser o portador da vela repelente e no meu egoísmo não percebi ter feito da xícara uma caneca.
Um fato notável das xícaras adaptadas à canecas é que todos sabem que elas são xícaras. A borda mais baixa revela a condição delas. Ainda que se tente adquirir um novo pires em uma missão infrutífera ou aventureira (um explorador qualquer atrás do pires de cristal perdido), o conjunto não passará de uma dupla de tribos diferentes. Caso tenha sido fabricado depois, ou ainda que tenham sido fabricados na mesma época, as marcas do uso, a rotina, o cheiro do detergente ou do café que lhe apossou, as risadas que ela incorporou a sua estrutura e lhe tornam familiar, por maiores que sejam as boas vindas, reafirmam a todo instante que o pires novo não passa de um estranho no armário da louça. Pires quebrado e sem conserto se vai e a xicaneca ou caxícara fica. Torço, oro e desejo que ela tenha forças para prosseguir em sua jornada, enquanto penso nos mais de 80 motivos pelos quais a xícara foi obrigada a ficar só…
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Eu, eu mesma e a vaca de pelúcia
Carol Farias. Quatro anos. Adora a Barbie. Inventa para a boneca algumas profissões, as mais correntes são professora e bailarina. Assiste programas infantis representantes da época, quais sejam, apresentadoras seminuas e músicas de duplo sentido, palhaço drogado, vovó que vem com bengala de fábrica, entre outros. Deseja fazer um desenho lindo para o papai e a mamãe, mesmo sabendo que o papai vai criticar a casa sem chão e a flor com tamanho desproporcional ao ambiente.
Carol Farias. Trinta e três anos. Adora rir e fazer as pessoas rirem. Lembra em como foi má colocando a pobre Barbie para ser professora e decidida a pagar ainda nesta vida por este erro, assumiu o cargo de professora adjunta no município do Rio de Janeiro. Quase não assiste TV, pois os noticiários parecem filmes de terror e terror nunca foi a sua praia. Deseja concluir o mestrado, mesmo sabendo que a banca vai criticar o método, a falta de um autor fundamental e determinada fonte que poderia ser melhor explorada.
Vaca de pelúcia. Idade desconhecida. Adora quando a colocam em lugares altos, porque pode observar melhor os humanos. Acha a vida deles uma piada de mau gosto e por não fazer parte desse grupo, se diverte. Deseja um pote de pipoca para degustar enquanto assiste as derrotas alheias, mesmo sabendo que não tem boca para devorá-las.
Descrição da imagem: Há uma foto minha emoldurada na parede. Eu estava com quatro anos nesta foto, deitada no sofá, com uma das mãos apoiando o queixo e sorridente. Há uma Barbie desgrenhada ao fundo. Na foto que postei estou sentada na cama, encostada na mesma parede que citei, abaixo dessa foto. Olho para a foto com uma cara desconfiada. Na cabeceira da cama há uma vaca de pelúcia com ar debochado e triunfante.
MARCUS VINICIUS PEREIRA
QUE TEXTOS SENSACIONAIS!
SUPER DIVERTIDOS E INTELIGENTES!
O OLHAR CRÍTICO E DE HUMOR ÁCIDO DÃO UM TOQUE ÚNICO À ESTÉTICA DE SUA ESCRITA.
ADOREI