Um poema de André Monteiro
André Monteiro é doutor e pós-doutor em Literatura pela PUC-Rio e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Publicou os livros A ruptura do escorpião – Torquato neto e o mito de marginalidade (Cone Sul, 1999), Ossos do ócio (Cone sul, 2000), Cheguei atrasado no campeonato de suicídio (Aquela Editora, 2014), Liubliblablá: mastigações de um camelo (Bartlebee, 2015), escrito em parceria com Luiz Fernando Medeiros, Uma prosa de Sócrates (Macondo Edições, 2016) e Inacreditáveis: assovios antropopaicos (Editora Raquel, 2016), escrito em parceria com Roberto Corrêa dos Santos.
O poema abaixo é do livro Cheguei atrasado no campeonato de suicídio e foi selecionado pelo autor.
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Como fazer (ou não) um poema profundamente político?
um poema profundamente político
não se vende não se compra não se conta não se rende
não se ensina
nem sequer se insinua ao cacarejo político
um poema profundamente político não se faz com temas públicos
mas com temas impublicáveis
de corpos inauditos
corpos que dançam
no furo perplexo
da consciência
um poema profundamente político nasce
do orgasmo múltiplo inenarrável de incontáveis deuses
que se olham e se tocam e se beijam e se amam e se queimam e se jogam à vida
um poema profundamente político
não se faz com versos
não se faz com terços
não se faz com livros
um poema profundamente político não é um poema sobre a política
mas com a política do que não tem política e nunca terá
um poema profundamente político
é quase-poema quase-política
não tem receita poética
não tem receita política
tem a fome
de uma vida que se devora sem remédio
um poema profundamente político
não é um poema sobre o povo nem para o povo
e sim com o povo que nele se inventa e se sacode
um poema profundamente político nasce do desejo dos corpos do chão
quando não suportam mais o peso do mundo
um poema profundamente político nasce e cresce e corre e morre e nasce e morre
e renasce e recorre e remorre e remove
um povo sem nome
um povo sem data
um povo sem dono
um povo sem rumo
um povo sem deus
um povo sem homem
um povo sem povo
a luta política de um poema profundamente político
é pela (auto)destruição
do poeta santo do poeta limpo do poeta sonso
que de dia verseja e de noite
conta e canta
a publicidade fanática fascista
de seus tantos e tontos famigerados escândalos
em moderníssimas boutiques de conveniências
(panfletos do “bem viver”)
a luta mais radical do poema profundamente político
é pela (auto)destruição
do poeta cover que goza
com o típico cassetete do poeta alheio
um poema profundamente político não é macho nem é fêmea
não é negro nem branco nem azul nem amarelo
não é homo nem hétero nem bi nem tri nem tetra
não é careta nem moderninho
não é anarquista nem governista
não é de centro nem periférico
não é direito e nem é gauche
não é santo e nem é demônio
é redemoinho ferido de fúria
um poema profundamente político é um poema sem poeta
um poema profundamente político é um poema da vida sem a mania da vida
um poema profundamente político é sempre profundamente demais
para a poesia e a política de um só rosto
um poema profundamente político não é de deus nem do diabo
e nem do homem e nem da palavra
é a travessia roubada de um milagre sem santo
um poema profundamente político não é
definitivamente não é
um poema como este que se vê se lê se ouve agora aqui
porque um poema profundamente político
não dá bandeira não dá palavra
não dá ouvidos nem olhos
à minha sua nossa vossa sacola política
porque um poema profundamente político
é um poema que grita no rasgo escuro das gentes
e o grito mais alto de um poema político
é a mais bela e a mais profunda e justa música de seu silêncio