Um poema de Duilio Kuster Cid
Duilio Kuster Cid. Natural de Vitória (ES), graduado e mestre em História pela UFES, é professor, ator, dramaturgo e poeta, autor dos livros de poesia O Sobrado (Ed.Unifor, 2017) e O Canto da Crise (Cândida, 2017), além da pesquisa histórica Revolução de caranguejos: o Teatro no Espírito Santo durante a Ditadura Militar (Cândida, 2016).
***
Pátria
I
Num canto do cosmos,
no antro do pranto do mundo,
o desencanto do canto do caos.
Num recanto esquecido por todos,
ao sul, de lugar nenhum, um grito,
espanto.
É um conto de crise, é um canto de dor,
é murmúrio, medo, mudo, múmias, ataduras
na boca do Abaporu.
Calou-se o dia
e com ele as cores que encantavam jardins.
Calou-se a noite
e com ela a rosa que encantava a lua
em louca serenata
no meio da rua.
A rosa agora está nua,
despida e espancada
no meio da ágora,
onde a agonia
é a metáfora baldia
da pátria fria
e acinzentada.
Tombaram-se os versos,
rasgaram-se em fogo,
enquanto um relógio austero
anunciava um novo tempo
sem aventuras
ou assombros.
Virou tudo: pragmatismo, miopia, engano.
Fomos vistos: versos, canção, cinema, delírio.
Restou agora o frio
do tempo
no espelho
retido
dos que se fizeram descrentes,
da hipnótica demência comendo
a mente,
como quando, a pele, a peste come,
como restos de ratos infectos
em reprodução.
Foi uma cinza bruma que engoliu o sol
embaralhando visões de esperança,
foi um grito preso na retina,
farol esquecido na garganta.
O sorriso que emoldurava o infante,
crescendo cinismo, tornou-se montante, monturo, monstro, muro, murro
na ponta
do pau.
Havia delírios de união,
de uma mão unida a outra,
unidas
a hinos, a brancas bandeiras, a bandas e baladas
de harmonias.
Foram espasmos e espantos,
espantalhos, em talismãs pintados de luto e foice,
em meio aos patos de cinismo, revelaram ossos,
gritaram histerias, perfuraram feridas, fibras, tripas, vísceras, nervos, vasos
e precipitaram
hemorragias.
II
o real está partido
a verdade jaz em c a c o s,
miragens de passeatas regadas a música barata
e coreografia,
cacofonias vulgares, câncer corrompido, como pedras opacas explodidas
no final da tarde.
E foi assim tudo tão rápido:
no piscar dos olhos sonsos,
boca aberta bocejante,
um respiro do ofegante,
o olhar do afogado,
dedo rápido em gatilho,
gato a cair do telhado,
como um riso explodido
na boca do conformado,
como um dente extraído
do andarilho abandonado,
ou a justiça esquecida
num destino já traçado.
Os guardiães da moral nacional,
paladinos da castidade cristã,
gritavam raivosos no jornal global
a rendição da pátria afundada em pecado,
personalidades pilantras transmutaram-se em protagonistas personagens
da diabólica
trama.
Fez-se um bicho expiatório
que virou novela de audiência,
sangraram diariamente o bezerro
e, com seu sangue,
celebraram vivas
em louca carnificina amoral,
enquanto a plebe assistia a tudo calada,
ébria
pelo televisivo vinho,
assassinada
– como embriaguez de novela –
por seus falsos redentores.
Na guilhotina,
os algozes sorriam
o choro de dor da sentenciada
enquanto o populacho aplaudia
e vibrava.
III
A tirania é a imagem
que atravessa o instante,
o mito do bom,
o mito do raro,
o militar virando mito
na ignorância de um país perdido,
agora, é ídolo, o justiceiro capitão do mato.
IV
A cabeça decepada de uma vaca cega observa
a rua taciturna
colorida
de carnificinas,
a rua pedra observa a ferida
que não cicatriza,
a rua pedra comemora quando foi campo um dia,
quando a brisa sussurrava-lhe a terra viva,
hoje, aprisionada, no silêncio do concreto,
a muitos metros da manhã,
sob o peso das botinas,
rezando o seu rosário de estrelas,
desamparada em sua alcova profunda
de terra e espada.
V
Os homens têm os lábios podres
e sentem congelar os dentes
quando bradam as suas bravatas,
redemoinhos retóricos que giram, giram, giram e não geram
primaveras.
A língua furtiva da injustiça envolve-nos a garganta,
como a gravata do enforcado, e nos retira o ar
(de preferência na alvorada, quando são poucos os que sonham o mundo)
e nos desidratam em poentes de altas chamas.
A pátria está perdida no frio da aurora,
como uma pobre aranha passada a fio de espada
enquanto caminhava, com suas múltiplas pegadas,
rumo ao horizonte e veio o tédio e a tensão e trucidaram
escolas e recordações,
hospitais e sanidade.
O poente implacável queimou esperanças,
recriou abismos e distâncias
e as ruas foram sendo preenchidas por medos vagos e quartéis,
precariedade e monotonia
da escuridão que não cicatriza
as feridas.
VI
A justiça,
berrando animalidades como uivo de cadela,
devorou a sua venda
e os seus olhos crus,
revelando a obsessão mórbida
de ser uma cega dependente
de distopias febris,
como fogos de artifício
feitos de bolhas de dor e suplício,
enquanto a bicharada inferior sorria a sangueira que corria
a cada golpe de chicote que estalava
no ar
e relampejava
no lombo
das mulheres de luto.
A cega justiça sorria
a chegada dos navios de sombra
e das pálpebras de inverno,
o silêncio galopando em equinos de mofo,
embaixo dos cavaleiros derretidos de espanto,
e pronunciava as suas incompreensíveis
sílabas
silibrinas.
A justiça suprema pintou-se de manchas,
num caminho de lama,
enquanto a alma nacional era ninada num ninho de víboras,
chacais,
escorpiões,
abutres,
serpentes
e demais bichos políticos,
com interesses privados,
misturando cinzas
a escarros nefastos
e tudo o que toca a mão da nova justiça, contamina,
saciando a fome de sua besta favorita,
a ridícula
busca
por
poder.
VII
No congresso dos parasitas,
homicidas, hematófogos, homofóbicos, misóginos, evangelistas, impuros,
falsos
moralistas,
disputavam tribunas e audiências com seus ridículos corpos duros,
vestidos de onerosos trapos,
num palco macabro,
retorcidos como galhos
mortos e corroídos
por bichos.
Enquanto se ria a classe alta ridícula,
elite castrada de uma raça doentia,
a comprimirem os corações como um papel que se amassa.
Risível casta escondida em suas estúpidas alcovas
de praias milionárias,
mansões construídas em ilhas de cara com a miséria
baldia,
ofensiva,
da grande massa que se percebe exilada
em sua apatia,
como virgens violentadas
com sonhos em feridas.
Enquanto a elite desfilava a sua voraz ironia
de brancos bebês
e pretas babás,
de honestidade
nas panelas de marca e teflon,
numa passeata passarela de minhocas e de merda,
fazenda de húmus sombria
a alimentar a sua louca orgia de língua
ligada
à farta
teta
do consumo.
VIII
Noite e dia,
entre quem resistia,
ia desaparecendo a energia,
numa batalha vã entre a verdade e a mentira,
meticulosamente construída na fartura prometida
de um amanhã
na cara do populacho sujo
e de rosto roído por baratas e ratos,
essa gente que não é digna de ser chamada de “bonita”,
essa raça doentia de belezas não sabidas,
dóceis e pacíficos e condenados
a uma vida de cativeiro – maldito –
sempre frio e ulcerado.