Um poema de Edo Valmobida
Edo Valmobida nascido em 1995, no interior de São Paulo, atualmente reside na capital. É graduando em Letras com habilitação em língua Inglesa pela Universidade de São Paulo. Teve alguns de seus contos publicados na Revista Subversa, Enfermaria 6 e na Ruído Manifesto. O poema abaixo é um dos seus primeiros no gênero.
Contato: eduardo.valmobida@gmail.com
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toda vez que saio de casa me perco.
começa assim porque é sempre assim
que as coisas começam comigo.
não sei se em algum momento da vida
foi diferente. não me lembro e acho
que não foi não.
toda vez que saio de casa
é como se fosse destino me perder
– sempre com um plano pronto
caminho traçado mentalmente
pelo menos três vezes antes
de abrir a porta
checada a bolsa a tiracolo
pra ver se carrego todo o
necessário para não morrer
no meio da rua.
apesar de que no meio da rua
dá pra se morrer de várias formas
atropelado, tropeçando, atravessado
por uma bala ou por um susto
de ver a polícia do outro lado da rua.
dá pra morrer muito e muito fácil.
mas não é disso que eu tenho medo
de morrer. morrer assim é fácil mesmo
mesmo pra quem morre, porque não
tem tempo pra pensar em mais nada
apenas pra ouvir o som do
trombo, do tombo, do tiro, do
troço todo descarrilando
quando só se pensava em
seguir em frente, quando
se tinha um destino. –
como destino eu me perco e
quase que me perdi no texto
também. mas a questão é
que eu sempre me perco
ao sair de casa. e é sempre.
como se
de alguma forma o mundo todo
se preparasse para o momento
em que meu pé toca a rua
e aí ele todo se muda, assim mesmo,
bibbidi-bobbidi-boo e lá se vai
a ideia da cinderela – eu mesmo.
ao invés de chegar, linda princesa,
acabo todo suado, frustradíssimo,
atrasado, carregado de sentimento
com cara de nuvem negra,
sem saber nem por onde,
quando tudo o que eu queria era
conseguir seguir o mapa que eu montei
na minha cabeça.
mas antes de sair é checar a bolsa:
carteira, cartão, caderno, caneta,
tabaco, isqueiro, filtro, papel-de-cigarro,
às vezes tem cigarro já pronto também,
garrafa d’água – cheia de água –, moedas
porque aqui na europa tem que pagar
pra usar banheiro e eu sempre preciso muito.
esse é o medo dois das minhas
tentativas de sair de casa:
sempre que eu estou na rua, do nada
vem uma vontade obtusa e absoluta
de fazer xixi.
e aí eu passo meia hora tentando segurar
pra poder aproveitar o lugar em que eu estou.
mas é meia hora segurando e uma hora
desesperado procurando banheiro.
qual o problema dos planejadores
de cidade que não pensam nunca
em colocar banheiro público nos lugares
pú-bli-cos? eles não devem fazer xixi
ou não visitam esses lugares,
talvez por isso nunca vão saber o que
é ter que correr de um lado pro outro
procurando banheiro e, chegando lá,
com o xixi quase saindo de vez,
descobrir que não tem moedas suficientes
pra fazer a catraca girar e liberar
a entrada pra que você possa liberar
aquilo que já quase sai tão iminente.
enfim, esse é um dos dramas
que me fazem sempre
pensar mais de duas vezes se
se eu vou sair de casa mesmo.
aí tem também que lá na cidade
de onde eu sou – não “minha cidade”
porque foi a cidade que se apossou
de mim e não o contrário –, lá em
sampa
eu fui assaltado muitas vezes,
isso traumatiza, mas menos que
cruzar com alguém
que quero muito ver, mas não
quero cumprimentar – vai entender.
acho que tenho mais medo
é dos paulistanos mesmo. porque
eles, eles eu vou ver de novo
com certeza, mesmo que não os
reconheça. os paulistanos, eles
fazem parte de mim porque eu
sou da cidade e eles são
da cidade também, e aí é que
aterroriza saber que eles veem
pelo lado de dentro o mesmo
organismo em que eu vivo,
mas veem de forma diferente.
imagina o que é olhar pra uma
obra de arte que é azul
e você diz “é azul”, aí chega
alguém que está na mesma exposição
de arte que você e diz “é vermelho”?
aí tenho medo de sampa porque
lá eu não existo direito
porque existo diferente.
olha, me desculpe, mas eu avisei
que toda vez que eu saio de casa
eu me perco. pois bem, isso aqui,
essa coisa meio quebrada
que pretende soar sonora
que finge que toca fundo
numa coisa só, coisa que tomo
a liberdade própria dessa forma
pra chamar de: sen-ti-men-to,
essa coisa não é minha praia
não é onde rebate o meu mar.
por isso me perdi e esqueci que
ia falar de outra coisa. mas essa
coisa de que eu ia falar depende
diretamente dessa introdução
que foi também perdição.
toda vez que eu saio de casa eu me perco
como se fosse promessa encontrar
num mapa gravado na minha cabeça
alma ou espírito com intensidade
ou espírito pregando peça
e eu saísse como que por instinto
virando para a rua errada
lendo o mapa de cabeça virada
como se fosse simples assim
ir indo e ir indo é sempre simples
até que se percebe o erro.
mas o meu erro é meu inferno
e minha glória. porque é sempre
que eu me perco que eu chego
onde eu devia, mesmo sem saber
porque sabendo eu chego onde quero
mas nunca chego tão feliz
quanto quando vou cego e desvelo
o mapa das ruas não turistadas
não mapeadas pelos pés dos
fotógrafos assíduos e modeletes
de sorrisos cansados de tanto
sujar calçadas. eu não,
eu não estou só
de passagem.
aí também coitados dos
residentes que dificilmente tem
lugar pra chamar de “meu”.
imagina que triste não ter,
numa cidade tão linda e vivida
com o fogo da infância um
lugarzinho pra dizer “é aqui.
aqui vivo e morro.”.
não que isso valha de muito consolo
porque, como eu já disse antes,
é fácil morrer e nem sempre se
morre onde planejado.
eu que me perco sempre
já me acostumei e, no momento-já
em que me descubro perdido
esqueço também a condição
e continuo olhando e andando
abençoando a rua com minha glória
de quem nunca teve chance
de salvação. deus nunca quis
me ver andando pelo caminho certo.
foi só andando pelos caminhos
tortíssimos e fora de rota,
eu, sempre sempre sempre
pelas vielas como se as vielas
tivessem um mecanismo
magnético que me atrai
e me arrasta pela cidade
inteirinha até que eu chegue
com cara de quem nunca soube
o que é um mapa ou um plano,
até que eu chegue com a cara
de susto de quem presencia
um milagre mais uma vez.
é como se eu fosse santo
e com toda a naturalidade
produzisse essas aleluias
que ninguém mais conhece
– talvez os velhos da cidade
que nasceram na mesma cama
que dormem até hoje, e que
foram riscando com a lâmina
do tempo a palma da mão numa
tentativa de mapear a cidade
de cabo a rabo, como atestado
de que viveram ali e a fizeram
sua e não o contrário. acho que
só quem nasce e morre no mesmo
lugar é que pode dizer que
teve um lugar no mundo.
eu não tenho lugar no mundo.
talvez por não ter lugar
pra chamar de “meu” e dizer
“aqui vivo e morro
e ternamente digo com a
intensidade de um “eternamente”
digo “aqui vivo e morro”
como se do topo de qualquer morro
eu visse o mundo todo
do jeito que deus vê as pessoas
com seus tamanhos de formiga
meio perdidas ou bem achadas
caminhando pela rua
é só nesses lugares que eu penso
que me encontro e que finalmente
sei onde estou ou quem eu sou
mesmo que na verdade eu nunca
vá saber qual é a minha direita
se não olhar para a cicatriz
na mão esquerda
– e esse truque eu aprendi quando
eu tinha uns sete anos e a minha
professora de piano escreveu
e e d nas minhas mãos porque
toda vez que ela falava
“faz isso com a mão direita”
saia um som grave do instrumento
e as minhas mãos, que deviam ser
os instrumentos principais
faziam tudo ao contrário
e agora eu imagino quanto tempo
teria levado para que eu soubesse
qual é o lado direito e o lado
esquerdo
se eu nunca tivesse tido aulas
de piano.
não que isso sirva de muita coisa
porque quando eu saio de casa,
mesmo com mapa na mão,
nem o gps eu entendo,
porque eu nunca sei qual a direita
ou qual a esquerda da rua.
pode parecer muita tolice
isso tudo de me perder
por não saber as direções,
mas quando eu olho pro mapa
é a perspectiva de quem
que dita o tamanho do mundo?
tem uma regra geral, eu sei,
mas, assim como pra aprender
uma língua nova a gente
sempre tem que levar em consideração
as exceções – me disseram agora que
o polonês tem muitos casos, acho que
vinte e quatro formas para cada palavra,
tem-se ainda mais exceções,
então se nem a língua é estática
e funciona sob uma regra geral
como é que o espaço, o tamanho
do mundo, poderia ser compreendido
por uma regra como direita e esquerda?
aí me disseram “direita é onde o sol nasce”
e me pergunto como diabos
eu vou saber onde o sol nasceu?
claro claro claro, tudo isso é
uma lógica minha que meus amigos
dizem que eu tiro do fiofó,
mas não é déficit de atenção,
nem problema neuronal,
eu só não sei mesmo
como é que eu faço pra colocar
a minha perspectiva junto com
a perspectiva geral.