Um poema de Marcelo F. Lotufo
Marcelo F. Lotufo é professor, escritor, tradutor e editor. Para as Edições Jabuticaba, traduziu Sotto Voce e outros poemas, de John Yau, Que tempos são estes, de Adrienne Rich, Os elétrons (não) são todos iguais, de Rosmarie Waldrop e x, y, z, de Carolina Tobar. Publicou ensaios e contos em diferentes revistas e jornais e o livro de contos Cada um a seu modo (Jabuticaba 2020).
O poema abaixo é inédito.
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A casa
Não abandonada, mas esvaziada
Agora, sem memórias, ou quase
O quarto da vovó, o escritório
Os livros empoeirados há tanto tempo
O quartinho de empregada feito depósito
Uma marca do país onde vivemos
E de onde não conseguiremos escapar
Das relações que nos fizeram quem somos
Da culpa que carregamos
As crianças na sala com suas esposas
O sofá e as suas almofadas, a mesa de centro
Com enfeites acumulados durante toda a sua vida
A poltrona desbotada em frente à televisão
O piano quase nunca tocado
Apoio para porta-retratos
A dor de um acidente
Que finalmente chegou ao fim
*
Os objetos não podem nos consolar
Os pratos na parede, os guardanapos
A louça tirada do armário em dias de festa
Encaixotadas, mas ainda sem destino
As fotos amareladas no corredor
Dias de riqueza e viagens transatlânticas
Recordações que ninguém escreveu
Nomes que não soubemos decorar
Quem, agora, ficará com eles
Com a pintura da família
Com as calças curtas do seu irmão
Com as suas tias que não falavam português
Com a sua rigidez importada de navio
Estabilidade em tempos de mudanças
Que não saberemos mais encontrar
Um mundo que termina
Sem que o tenhamos compreendido
Fotografias em um país sem memória
Recolhidas, mas não guardadas
*
Como pensar em emendas
Quando o luto é um privilégio
A indiferença que nos cerca
Uma marca do país onde vivemos
E de onde não conseguiremos escapar
Entre bíblias e enciclopédias
Entre recortes de jornal e cartões de visita
Relembramos o seu decoro
Sem saber se ele ainda nos servirá
Reconhecemos que já estivemos aqui
E que inevitavelmente iremos retornar
Mas agora tudo parece diferente
Duvidamos se ainda somos uma família
Desconfiados, cantamos o seu hino preferido
Nos esforçando para acreditar em reencontros
Mas descobrimos em suas gavetas
Um inventário de perdas esquecidas
De dores que precisamos revisitar
*
O que faremos com os tapetes
De que você tanto gostava
Agora que ninguém nos proibirá
De recolhê-los ao quarto dos fundos
De impedi-los de ser o que sempre foram
A casa ganha novos significados
Que parecem não nos dizer respeito
A cama, o samovar, o quadro no escritório
A escrivaninha e a pequena mesa chinesa
Distribuídos para quem quiser levá-los
Recolocados em uso o mais rápido possível
Esvaziados de sentidos pregressos
As joias que tomamos por bijuterias
Quem, agora, ficará com elas
E apagará o que um dia nos disseram
O esquecimento parece inevitável
E foi ele que nos trouxe até aqui
Mas quem realmente acredita
Que o passado pode ser resolvido
E que o fim é só mais um recomeço
José Tadeu Gobbi
Bravos, matheus.
Foi uma viagem e tanto a leitura deste poema.
uma sucessão geracional na família e seus dilemas existênciais.
bravos.