Um poema de Michele Alves
Michele Alves tem 25 anos e mora na periferia de São Paulo. Estuda Letras na Universidade Federal de São Paulo e já lançou dois zines independentes: A Fuga e Silêncios. Aborda temas como transtornos mentais, política, feminismo, romance… Além disso, também é artista plástica e ilustradora, produzindo colagens manuais e digitais. Atualmente está escrevendo seu primeiro livro de contos.
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Artista do silêncio
(Aviso de Gatilho: abuso)
Eu ainda tenho pesadelos,
mas os sonhos são fragmentados,
evaporam da lembrança todas as vezes que abro
os olhos.
Sei que são pesadelos porque eu me lembro
do sentimento ruim do quando acordo.
Assim como me lembro do homem
que me tocou pela primeira vez
e seu toque queimou em meu corpo
destruindo as partes que eu ainda construía
nos primeiros anos da adolescência.
Eu lembro da sensação ruim, do gosto amargo
na boca. Do medo costurando o silêncio
na língua.
Mas depois, ele se tornou um fantasma em meu quarto,
um personagem de um filme de terror
ganhando vida.
E depois os toques se misturaram aos pesadelos
depois,
me construí em silêncio.
A vida seguiu, porque os dias tinham urgência de passar
porque o tempo caminhou para frente, eterno
arrastando essas lembranças como uma criança
carrega seu cobertor favorito pela casa,
mas eu ainda fiquei lá, presa em pequenos momentos
na quietude da noite, embalada pela escuridão.
E o toque queimava a pele, derretendo meu pequeno crânio
até pingar, fervendo, em meu cérebro.
Se solidificou lá, como os pesadelos que eu ainda tenho
que se dissipam no despertar.
Depois de derretida no calor dos breves momentos
fui moldada pela culpa, que calou minha boca.
O artesão sentiu prazer na forma, na ausência de som
e talvez ele tenha se chamado de artista,
pelo prazer de construir em mim
esse abismo.
Eu lembro do toque, derretendo meus alicerces
meu pequeno entendimento de mundo
minha pequena vida, ainda tão curta
virando cinzas pela manhã
quando o Sol despertava entre as nuvens.
Os pesadelos eram queimados
quando eu abria os olhos, depois apenas as cicatrizes
e a ardência na pele.
Eu, abraçada pela culpa, tão jovem para entender
o significado de certas palavras
me agarrei nos sonhos ruins, como se fossem minha parte
um pedaço perdido, se manifestando no sono.
Me agarrei nos sonhos ruins, como quem chama de destino.
No desterro de minha boca amarga,
os pedaços foram mal costurados, colados às pressas
uma parte de mim ainda ficou lá,
amedrontada demais para sair daquele quarto
porque ainda me senti tão pequena
mesmo no amanhecer da vida adulta
e ao abrir os olhos, um nó no estômago
porque os sonhos não esqueceram ainda
a forja estava quente.
E meu assediador, artista do silêncio,
sorria ao ver sua obra exposta
em minha memória
na moldura de um sonho ruim.