Um poema de Nuno Gonçalves
Nuno Gonçalves por ele mesmo: “nasci em Recife, mas sou cearense. Publiquei os livros de poesia: Cacos de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação e Calabouço de reticências ou a aridez do oceano. De prosa: O rio das onças. Recebi o Prêmio Ideal de Literatura com o conto “O caminho da novena” e com o poema “O canto do anjo vermelho”. Graduado em história pela UECE, mestre – na mesma disciplina – pela UFC & doutor em Estudios Latinoamericanos pela UNAM. Sou professor de história da América na UFRB, mas o que importa mesmo é que sou pai de Marialice”. Blog: insensata nau
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tempos de penúria
para claudio reis, beatriz gonçalves, daniel batata, ayla andrade & marialice, por razões tão constantes e tão diversas.
E para que ser poeta
em tempos de penúria?
Roberto Piva
mercenários russos desembarcaram em Caracas
– eis o que dizem os periódicos
fossem eles estadunidenses
por certo não seriam mercenários e sim
soldados americanos desembarcaram em Caracas
– eis o que diriam os periódicos
desses abnegados homens que abandonaram família, pátria e hambúrgueres
para restabelecer a democracia
salvar estrangeiros da tirania
e cavar tubulações que permitam ao Tio Sam
roubar mais uma reserva de petróleo
sim, são tempos de penúria e
todas as fontes criativas
parecem estar momentaneamente esgotadas
os vulcões adormecidos
as estalactites ressecadas
olho o cigarro aceso entre meus dedos e
sei que ele me mata
penso na minha filha na ilha do desterro e
me agarro à lágrima que escorre do olho da puta com quem
trepei a noite toda e que despertou ao meu lado
– dois corpos abandonados aos seus próprios mistérios
– dois corpos abandonados à desolação angelical
– dois corpos entregues ao juramento fúnebre da solidão
penso em manitol, dolantina, colonoscopia, polipectomia e
numa infinidade de palavras novas que
a vida adicionou recentemente ao meu dicionário e
me agarro à lágrima que
escorre do olho da puta que
(com uma calcinha suja e rasgada)
me olha com o ódio de quem olha
aquele que não consegue saciar seu desejo
e rasga as cédulas de dinheiro amassadas
e cospe na boca que à noite lhe beijou
e cospe na boca que à noite lhe chupou a buceta
e cospe no meu estômago estufado de gases
sim, são tempos de penúria
e tudo o que foi dito está gasto
adeus ao Sétimo
adeus às armas
adeus a tudo que provoca bílis
adeus às palavras de ódio e orfandade
exibidas como bonecas de manequins de úteros escuros
em redes sociais
todas as máscaras caem um dia
soldados americanos em Caracas são mercenários
mercenários russos em Caracas são soldados
e o que não dizem os periódicos é que são tempos de penúria
e o que não dizem os periódicos é que são tempos de guerra espúria
e o que não dizem os periódicos é que são deuses decaídos sedentos de
sangue & petróleo
como a puta sedenta de sêmen ante o poeta broxado
como a puta saciada aniquilada entregue à tristeza de um dia que amanhece
sem conseguir entender a lágrima que de si aflora
e goteja no sono do poeta que ao seu lado,
extasiado,
dorme
tudo está vazio
e o silêncio se prolonga como o rugido de uma fera
tudo é penúria
e o silêncio se prolonga como o sino assombroso de uma catedral em chamas
sangue & petróleo
supostos escritores desfilam suas máscaras seus manequins
exibem seus dejetos e suas insondáveis vaidades
egolatrias travestidas de felizes marionetes pseudolibertárias
nas valas cibernéticas
nas telas frias de computadores que
substituíram as praças os campos e os bosques
outro cigarro aceso
outro passo em direção à morte
um soco atroz na parede verde
como o líquido amargo que exala o fígado atormentado
caio fernando abreu morreu e eu não estava ao seu lado
não pude acariciar seus cabelos nem lhe dizer uma palavra de conforto
nem lhe revelar que como piva que como hilda que como adélia
ele foi um sopro de inteligência em tempos de penúria
piva está morto
hilda está morta
adélia está morta
bolívar está morto
só se cospe na boca de quem se ama
só se cospe na boca de quem paga bem e em espécie
só se cospe na boca de quem nos manteve em êxtase toda a madrugada
ou simplesmente nos mergulhou na decepção absoluta
(lembro de suas mãos curando as feridas em meu intestino
cicatrizando as fissuras abertas em meu estômago
purificando meu fígado, meus rins e
petrificando meu crânio)
– a garagem foi nosso abrigo antiatômico
enquanto mercenários russos & mercenários gringos
desembarcavam em Caracas
para preparar o terreno pro novo Vietnam
– a garagem foi o ninho de nossas aflições
enquanto fascistas colombianos e brasileiros se alinhavam
– a garagem foi o refúgio da distância que acumulamos
e nas escadas ali esquecidas se refletiu o lodo que trouxemos
das intempéries que sozinhos atravessamos
(os deuses que até aqui nos guiaram sorriram quando nos despedimos
sob o olhar cansado e centenário da velha tia
(os deuses que até aqui traçaram nossos destinos
como aranhas que não se cansam
choraram quando você fraquejou
quando minhas pernas tremeram
quando meu corpo de pedra reverenciou o caderno de um ausente)
são tempos de penúria total e absoluta
Marielle Franco está morta
Jean Wyllys partiu para o exílio
as milícias circulam livremente pelas ruas do país
como células cancerígenas destruindo as forças criativas do corpo social
como supostos poetas exibindo manequins de borracha na vitrine de silício
são tempos de penúria
são tempos difíceis
são tempos excelentes para ser poeta
para cultivar jardins de centauros e
semear algas no mar
são tempos de ressuscitar divindades oraculares
de se afastar de tudo que provoca bílis
de escrever de escrever de escrever de escrever
são tempos de se afastar do álcool e de todos os estupefacientes
são tempos de escalar as montanhas e
olhar para a própria imagem refletida
na abóbada do céu
são tempos de olhar para dentro
endoscopia, colonoscopia, ultrassom, hemograma
é tempo de descartar de remover de deletar
e de usufruir e desfrutar e cultivar os jardins de unicórnio
a guerra de dentro e a guerra de fora e a guerra das ausências todas
a roda grande passando dentro da roda pequena
se misturando aos gases dos intestinos e à fumaça dos cigarros e
às palavras da poesia que floresce na argila viva
tempos difíceis para quem tão cedo teve as raízes extraídas a fórceps
tempos maravilhosos para quem cultiva jardins de unicórnios
para quem saciou toda a sede de sexo de uma puta qualquer
para quem ao broxar conheceu toda a ira de uma puta de luxo
para quem viu cédulas de dinheiro rasgadas na cama
para quem abandonou o álcool e todos os estupefacientes
e se entregou ao blues dos anjos da desolação
tempos maravilhosos apesar das guerras
apesar das debilidades do corpo
apesar da impossibilidade de abandonar os cigarros
apesar dos mercenários gringos dos mercenários russos dos estúpidos fascistas
tempos maravilhosos apesar da colonoscopia
e da biópsia geral a que submeti a saudade
nossos corpos
deitados na jangada
nossos corpos
se acariciando na garagem
cada um com suas próprias cicatrizes
cada um com suas próprias maneiras de tratar as próprias intolerâncias
cada um buscando perceber o que realmente é importante
apesar de toda a cerração que se instalou
apesar dos sete milhões de véus da ilusão
apesar de saber que dessa vez o adeus ao Sétimo foi sim definitivo
eram apenas nossos corpos
e isso era muito
e isso era tudo em tempos de penúria
qualquer palavra além poderia estilhaçar a divindade de cristal que nos protegia
nos confortava e nos amordaçava ao Sonho Insepulto
de ser poeta em tempos de penúria.
Juazeiro do Norte, 26 de janeiro de 2019.