Um poema de Rafael Amorim
rafael amorim é poeta, artista em formação pela universidade federal do rio de janeiro e pela escola de artes visuais do parque lage, vive em padre miguel [zona oeste carioca]. escreve quase tudo em letras minúsculas, inclusive o próprio nome, por acreditar na desierarquia de uma palavra sobre a outra. nas artes visuais se interessa pela intersecção entre linguagens, vem construindo trabalhos que lidam com uma verbo-visualidade e desenvolve pesquisas sobre percursos e deslocamentos como principal metodologia do trabalho e do pensamento artístico. chamou sua primeira exposição individual de “eu mesmo juntarei a estrela ou a pedra que de mim reste sob os meus escombros”, que aconteceu no centro cultural phábrika, no bairro de acari, zona norte do rio. além da poesia, ocasionalmente escreve ensaios sobre seus próprios trabalhos e os de colegas artistas, textos de parede em exposições, recentemente escreveu o prefácio do livro de estreia de kaio phelipe, como cuidar de um girassol (editora patuá), curou as exposições “escrevo para me percorrer” no centro cultural da justiça federal – rj e “terreno baldio: experiência n.1” na pinacoteca da universidade federal de viçosa – ufv, seguido da proposta de residência artística ‘terreno baldio: experiência n.2’ no centro cultural da universidade federal de minas gerais – ufmg. rafael se interessa também por desmoronamentos, móveis abandonados, gal costa e segue na tentativa de ter seu primeiro livro de poesias publicado por alguma editora.
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sem título
prometi não mais escrever sobre o meu bem
mas justo hoje acordei bêbado de vinho barato
atrasado corrido sem banho às pressas quase
perdendo o ônibus torcendo pra não chover
pensando mais tarde vou comprar um girassol
para presentear o meu bem eu queria escrever
o nome dele em todos os muros mas sigo escrevendo
seu nome no escuro antes de dormir enquanto
a cabeça gira e palpita a planta do pé eu não sei
por onde pisa o meu bem hoje em qual cama dorme
em quais lençóis se enrola com quantas drogas
se embriaga eu sigo escrevendo seu nome no escuro
para que ninguém o leia justo hoje que acordei
ainda mais tonto que o habitual aquela bebedeira
que só aconteceu porque o meu bem que tanto estimo
não quis ir ao cinema comigo assistir bacurau
logo ele que ama assistir os filmes da karine telles
mas justo hoje que eu terminei de ler o seu livro
justo hoje que terminei a instalação do trabalho
lá no paço imperial para a exposição da próxima
quinta-feira eu queria falar sobre tudo isso ao meu bem
como meu almoço foi uma tapioca e como foi cruzar
de uma ponta a outra a feira de são cristóvão mas
justo hoje que meu bem não me viu atravessar a rua
e não viu que atravessei também a cidade carregando
um girassol no ônibus de volta tomando cuidado
para que por descuido sono ou cansaço a flor não deslizasse
por sobre meu colo então comi balinhas de eucalipto
porque eu compro balinhas açucaradas de eucalipto
porque eu gosto e porque sempre acho que depois do cochilo
e depois do café com leite e depois do almoço me acomete
um mau hálito que suspeito ser um problema gástrico
já que eu nunca cuido dos meus problemas de saúde
eu falo mais sobre as feridas paisagísticas as culpas
históricas o sangue e as veias abertas da última poesia
eu prefiro perguntar ao meu bem sobre os problemas
de saúde dele sobre quantas doses da vacina
contra hepatite ele tomou ou sobre quantos girassóis
ainda serão necessários para se atravessar a cidade
em forma de carinho endereçado ao menino
cuja existência depende das frases entreouvidas
por estranhos nas ruas que nos chegam como
a poesia daquela autora que tem o mesmo
nome de sua mãe e que tanto a gente gosta
justo hoje quando cheguei o meu bem não estava em casa
então descobri que sua mãe tem o mesmo apreço que o meu
pelos momentos de comunhão ocasionados pelo café da tarde
o girassol que meu bem não viu chegar em sua casa
repousa sobre a mesa da cozinha porque eu prometi
que não escreveria mais sobre o meu bem e justo hoje
resolvi trocar a escrita por um girassol eu me trai
eu vivo esperando um olhar uma mensagem visualizada
eu troco os novos amores pelo amor antigo do meu bem
eu me traio dentro de casa e na rua eu compro flores
e no banho penso no meu bem pelado quando olho
a cueca branca manchada de mijo o amarelado ali
sobre o branco alguns pentelhos soltos espaçados
perdidos cansados como os vestígios de um bicho
que vai morrendo que cheira forte e arfante sobre
a cueca pulsa prevendo sua morte o centro gravitacional
das investidas de homens que me olham de esguela
quando paro no mictório ao lado o centro para
onde eles direcionam os olhares e a tensão porque
não é o meu bem quem me olha nos olhos ele
vive fugindo mas de vez em quando ele aparece
deitado sobre a minha cama ele tira os sapatos
e se instala como quem diz eu não fujo mas ele
foge e ele permanece fugindo e nessas horas
quando o que falamos não cabe na poesia
nessas horas os homens nos banheiros públicos
ao meu lado no mictório os amores novos e
todos os homens do mundo já não são tão
homens quanto o meu bem que é apenas um menino
e que só aparece quando quer que eu aposte
todas as minhas fichas no escuro de seus olhos