Um poema e um conto de Karine Bassi
Karine Bassi (Karine Silva Oliveira), natural da terra do pão de queijo, é taurina por destino, escritora por sina e professora por sorte. Publicou os livros independentes Entulho de Rosas e Livro de História. Organizou e editou as coletâneas À luta, À voz, Raízes – resistência histórica e Raízes – resgate ancestral, das quais também participa como autora. É agitadora cultural, arte-educadora, editora, escritora marginal e idealizadora da editora popular Venas Abiertas, que articula a publicação de autores à margem do mercado editorial/literário. Junto ao Coletivoz, desenvolve atividades culturais e de formação, na região do barreiro e adjacentes. Também integra o grupo de teatro/poesia 5só.
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OSSOS DO OFÍCIO
do farrapo que me veste
eu, maltrapilho traste
procuro saciar a sede
em dois copos de plástico
e é místico
ver como me encaixo
na estatística
de que
dois corpos deitados
ocupam o mesmo espaço
dividindo a rua
a sorte não vem da direita
tampouco a esquerda
tem tampado os buracos
no dente
o resto que
pra minha sorte
tem me alimentado
do traste que me veste
insisto que sou farrapo
e se não me cubro com plástico
me culpo
pelo copo
quase nunca matar minha sede
de um corpo que resiste
e que quebra uma teoria
ao ser estatística.
*
UMA PAUSA DAS NUVENS ENTRE CHUVA E CHUVA
agradeceu mas nem rendeu assunto, quando deu que não, já estava com a mochila nas costas e a sacola de pão na outra. a gente sorriu de despedida que sabe que o encontro volta na segunda, quando o sinal bateu, ela já estava lá na frente quase chegando na portaria. o barulho de final de aula doía os ouvidos mas eu ainda consegui ouvir ela agradecendo mais uma vez. “valeu, fessora”. acenei com a cabeça e sorriso de estralar mandíbula. eu sabia que ela voltaria na segunda e na terça e na quarta e quinta não, porque é dia de levar o irmão mais novo no treino. mas eu sabia que ela voltaria. e nem era pelo pão, nem por gostar de escola ou por gostar de mim, ela voltaria pela poesia. do
“negócio de fazer choro acabar” como dizia ela. dito e feito. deu segunda feira e as 7h da manhã lá estava ela passando pelo portão. mochila rasgada nas costas, cabelo amarrado num coque e pernas finas. subindo degrau por degrau sem pressa alguma. nem me viu. Eu cheguei na sala uns instantes depois. começamos com potenciação e em seguida passamos para bases e expoentes. “nó, fessora, matemática é muito chato!”. um dos alunos se manifestou. “é chato mas é necessário”. eu disse limpando as mãos sujas de giz, na calça. “necessário é arroz com feijão, fessora.” ela comentou sem noção alguma da expressão que havia em seu rosto. a sala toda ficou em silêncio. a gente sabia que nenhum argumento seria capaz de ganhar aquela afirmação.
a aula continuou em silêncio até a hora do intervalo. quando o sinal tocou para irmos pro recreio, Joseane me esperou na porta. “sua roupa ta suja,fessora.” olhei para a calça e bati a mão algumas vezes na falha tentativa de tirar o branco que pincelava o jeans. “obrigada”, respondi caminhando junto a ela pelo corredor. “hoje cê vai lê oto texto?” perguntou ansiosa. “se der tempo, sim”. “e cê pode deixá eu lê um tamém?”. acenei que sim. Ela colocou um papel dobrado na minha mão. “só se cê achá que é importante igual aos que cê lê”. “uai, mas é claro que é importante, ainda mais se você escreveu com sentimento. O texto é teu, não é?!”. disse guardando o papel no bolso. “é sim, ué. mas eu só escrevi e pronto. num teve esses trem tudo que vi nos livro que a senhora me deu”. “nem toda poesia cabe em livro, Joseane”. fechei os olhos e sorri deixando as bochechas falarem. ela não disse mais nada, apenas se despediu com as mãos dando dois tapinhas no meu ombro.
a escola nem sempre é um ambiente revolucionário como pintam por aí. por vezes é o ambiente mais opressor para uma criança que nasce longe dos padrões de imposição social. Joseane era daquelas meninas de corpo esguio e pele negra, tem os cabelos alisados e olhos cor de folha seca. moradora do Itaipu e a mais velha dos três irmãos. nunca gostou da escola. uma vez numa excursão que teve para a cidade de Ouro Preto, me contou que sempre quis fugir da escola porque sofria muito bullying desde nova. falei pra ela que era racismo, que eu mesma já havia passado por aquilo várias vezes durante a minha infância e que precisávamos lutar muito para acabar com essas opressões que muitas vezes nem identificamos. também lembro que falei sobre a poesia, que até então ela vinha sendo a minha arma mais potente de afrontamento à sociedade e a todos os opressores. ela me disse algo sobre estar feliz e eu sobre perder o medo “escrevo porque é preciso manter a vida viva, menina!”. ao fim do dia voltamos para a escola cada uma carregando uma experiência e um saber novo. desde então, todos os dias antes da aula acabar eu lia um poema para toda a classe, as vezes um meu, as vezes de outros poetas, no começo a turma estranhou um pouco por eu ser professora de matemática, mas logo foram se acostumando á ideia. se passaram alguns dias e eu não via mais Joseane nas aulas, achei que era apenas por ter adoecido ou algo do tipo, ou até por estar perdendo as horas – ela sempre reclamou do horário – porém quando deu quinze dias, eu recebi a notícia da direção de que ela tinha saído da escola. bati na porta da sua casa. “tá dando pra ir não, fessora, tô oiando a fia da moça pra ajudar aqui em casa. eu busco e levo pra escola, já salva o pão”. consegui convencer ela a voltar com a promessa de comprar o pão todos os dias. Ela me fez prometer que “só até as coisas ajeitarem e ela arrumar um trabalho de carteira assinada”. Combinamos. tem sido assim há três meses. ela vai às aulas e eu compro o pão.
ainda faltava cinco minutos pra começar a segunda etapa, peguei um copo de café na sala dos professores e subi pra sala. tirei da mochila um zine e um livro e coloquei na mesa. aos poucos a sala foi ficando completa, ela entrou quase que por ultimo. já não entrava mais de cabeça baixa, era possível até ver um sorriso em seu rosto. como eu não havia lido ainda o bilhete que ela me entregou mais cedo, a chamei la na frente. ela começou a recitar com felicidade, a turma inteira prestava atenção às palavras que por vezes duras, nos fazia reflexivos. ao final do poema, pediu para que eu lesse em voz alta o papel que havia me dado assim que descemos pro recreio. tirei o papel do bolso. li. “é preciso manter a vida viva”. meus olhos se encheram d’água, “a poesia salvou minha vida, fessora!”. completou. Quando terminou, se sentou sem pressa ou vergonha. já não era a mesma. e eu? também não.