Um poema e uma crônica de Felipe Sanna
Felipe Sanna: historiador, escritor e poeta paulistano. Escrevo textos sobre o cotidiano da capital, misturando realismo brutal e lisergia poética. Esteticamente, minha obra é fruto do cruzamento entre Rubem Fonseca, Kurt Cobain, Clarice Lispector, Sabotage, Lima Barreto, “Carlo Marx” e Rita Lee. Um tremendo bacanal. Participei de antologias pelas editoras Patuá, Matarazzo e Futurama. Publicarei este ano meu primeiro livro solo, chamado Cabeça de Sapo, pela Editora Vicenza.
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A vitória dos medíocres
Uma miragem passou por mim,
Atirando flechas de fogo
Num coração desarmado.
Um velho clemente assina sua carta de demissão.
Investidores antecipam lápides.
Picaretas sorriem com caixas de gargalhadas socadas no céu da boca.
Anjos desabrigados procuram mães de aluguel.
Subalternos constroem prédios de areia.
Tempestades-escombros soterram palavras doces.
Quem levará a culpa?
O laranjal elevado à enésima potência.
Brasil! Terra nostra! Ou melhor… Cosa Nostra!
Um poeta corre sem fôlego nas escadarias infinitas do tempo.
Lilith canta em Ré bemol:
“Eu tenho a chave do Paraíso!”
Não, eu não acredito mais nisso…
Os beijos de minha mulher
Não são mais felizes
Como antes.
O odor podre toma conta do bairro onde moramos.
Cupecê. Jd. Miriam.
Corpos cadavéricos vagam nus por ruas e avenidas.
Desempregados noiados e catatônicos rolam em calçadas imundas,
Amparados por fiéis vira-latas a acudi-los
Na vala,
No meio-fio,
Na sarjeta.
Empilhadeiras de sonhos rumam para o necrotério.
Pedaços do que foram um dia meu vizinho Valdir,
Minha amiga Jessica,
E o seu primo Evair.
Todos mutilados para sempre,
Na sarjeta secular da História do Brasil.
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Ruanda
Impaciente, saio do metrô esbarrando em passageiros apáticos que vivem murmurando e soluçando sobre a merda de suas vidas até encontrarem com a morte no fio da navalha. Os rostos borrados nas janelas de cada vagão acusam o intragável cotidiano. Só mudam de nome e endereço. Eles se parecem com os transeuntes que vejo de segunda a sexta rastejando seus sapatos rotos pelo Viaduto do Chá, com suas pastas de couro gasto e um par de remela amanhecida nas margens e no fundo dos olhos. No metrô há vários deles, comportados, desolados, voltando do trabalho, quase mortos. Estou com fome, e quando faminto, fico desbocado. Infiro coisas aleatórias com absoluta certeza. São como sentenças. Ou quase-sentenças. Fruto da experiência. Passional, finjo, e quando finjo, nunca me engano… É, é isso aí! A passos largos, subo a escada rolante que desemboca na Praça da Sé, em frente à catedral. Mais duas quadras estarei em casa e poderei traçar aquele resto de strogonoff com purê que há dois dias está na geladeira e fica melhor a cada dia que passa. Algumas coisas são estranhas, e por isso são belas. As crianças da praça me recebem de braços abertos. Eu as evito. É quase uma da manhã. Elas estão sujas e fedem há dias. São como anjos órfãos arranhando paredes imaginárias nas ruas desertas de suas cabeças, vomitadas do céu por má conduta, e que pararam com aquele delírio ao me verem, e lembraram que precisam de um pai, de um abraço e sabe-se lá mais o que. Cabeças enlouquecidas, disléxicas, retorcidas… Pela fome? Não, pela cola! Paranoia que turbina pensamentos. Delírios. Sonhos. Pesadelos. Ouço frases desconexas de alguns, ao vento… Ouço risadas. Mais risadas. Risadas macabras. Forçadas. Banguelas. Gritos, socos e pontapés. Um homem caído. Na calada da noite, na boca do estômago, na boca do lixo, o tombo, a queda, sim, a repentina. Bum! A dinâmica dos acontecimentos muda num piscar de olhos na ‘madrogada’ paulistana. Bum! Estação Sé. Na quase fria madrugada, as crianças órfãs de outrora gingam sincopadas com firmeza e autoridade nos pés, como malacos malucos, experientes, com pernas tortas, de alicate, e canivetes sangrando dentro das mãos amareladas pelo crack. O trinta e oito, ou melhor, o ‘berro’ que um deles carregava há dias, fora dispensado, na ‘muquia’. Sempre um passo à frente dos ‘pulícia’. Eles nunca estão por perto quando a gente precisa… Determinados. Folgados. Psicóticos. Gingam em minha direção. Presa fácil, para eles, eu sou o ‘vacilão’. Eles não queriam o meu abraço paternal. Eles queriam a porra da minha carteira. Baqueado. Caminho alguns metros a esmo. Olhos na nuca. Aqueles rostos sádicos, com passos tortos, engasgados, eufóricos, cada vez mais perto. Não há como. Nem disfarço. Corro com os pés na nuca. Olhos na nuca. Aqueles bonecos de cola cada vez mais perto. Não vejo nada. Tropeço. Caio. Bum! Num corpo cadavérico, que jaz obsoleto. Sem fome e sem dor. Quase moribundo. Pele e osso. Ruanda. Ruanda é o nome do corpo. Batizado por mim neste momento. Quase-corpo. Quase-alma. Calada. Não sei se dorme ou só desmaia. Esfolada. Açoitada. Pela droga. Pela vida, desgraçada. E agora por mim pisoteada. Ouço latidos. Ouço ruídos. Ruanda era a mãe provisória daquelas crianças sem mãe. Daqueles cachorros sem dono. E até dos ratos fúnebres que roíam migalhas à sua volta. Faminto, comi o strogonoff com o gosto da morte na boca. Aqueles pensamentos só cessaram no dia seguinte.