Um poema e uma crônica de Mariana Bracks Fonseca
Mariana Bracks Fonseca é mestra e doutora em História Social pela USP. Especialista em história de Angola com foco na rainha Ginga (Nzinga Mbandi) e sua atuação política e militar na articulação da resistência à ocupação portuguesa na Era Moderna. É autora do livro em quadrinhos Rainha Ginga: guerreira de Angola e de outros livros acadêmicos sobre História da África e educação.
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Tecendo o amanhã
Eu continuo acreditando na beleza das flores
Continuo cultivando jardins
Confiando na força da semente
Mesmo que eu saiba que a luz é pouca, o solo é seco
Eu sigo conversando com os passarinhos
Admirando a leveza do beija-flor
me encantando nas matas
Mesmo que digam que todos já voaram
Eu me firmo nas rochas
Limpo os rios, retiro das águas tudo que impede sua fluidez
Solto meu grito nos ventos da liberdade
Queimo no fogo da consciência o que não mais deve estar
Eu me movo pela esperança de dias melhores
Acredito que o força do bem é sempre vitoriosa
Que tudo tem um propósito divino
E que todo o mal que parece triunfar será derrotado por vozes dissonantes
Eu caminho com a certeza de que o mundo é lindo
Águas vivas vão brotar
Tem para todo mundo
A abundância é ilimitada
Preparo-me para acessar toda a potência do meu ser
Romper barreiras, superar desafios
Sigo buscando dentro de mim
Toda a verdade do universo
Eu teço, no íntimo do meu ventre
A conexão há muito perdida
De que todas nós podemos, temos poder
Para construir o novo
*
A professora e a revolução em si
Mais um dia de trabalho terminava. Cinco aulas consecutivas…Aff…Ela parecia triturada.
“Será que era isso mesmo que eu queria para minha vida? Foi para isso que estudei tanto?”
Pensava ela enquanto entrava no carro, com as mãos lotadas de provas e exercícios para corrigir em casa. “Acho que ninguém prestou atenção em nada do que falei…” Vida inútil era o pensamento que não lhe saia da cabeça.
Andou mais ou menos dois minutos com seu carro e caiu no imenso engarrafamento. Grandes cidades, grandes problemas… E naquele longo movimentar-se lentamente, ela ia refletindo sobre o sentido de sua vida. Estava insatisfeita, isso era óbvio! Mas com o que? “Agradeça que você tem emprego. Nos dias de hoje, ter trabalho é privilégio.”, lembrava do conselho da prima que nunca trabalhou…
“É! Tenho que agradecer”, concluía ela enquanto sentia a cabeça latejar. Engarrafamento, aulas ruins, alunos barulhentos, conta corrente quase zerada… Vários fatores faziam sua cabeça explodir.
“Que merda de trânsito! Nunca acharão solução para esse caos?”. Percebeu que tinha alguma manifestação por ali perto. “Será que estes estão querendo o quê?”. Já ia começar a reclamar da baderna, mas se lembrou que apoiava os movimentos sociais, e, professora de história que era, acreditava na importância da mobilização. Autocensurou-se e tentou respirar para aguentar a pressão do trânsito.
Doida para chegar em casa, olhou para o ônibus ao lado, lotado, mais que lotado, pessoas esmagadas por todos os cantos… “É! Tenho que agradecer!”, e sentiu-se levemente aliviada por ter conseguido comprar o uninho 2000. Ainda faltava algumas prestações, mas já lhe dava a posição de superioridade frente ao grosso do proletariado apertado no coletivo.
Chegou em casa. O marido. desempregado, deitado no sofá, como sempre! “Oi amor”, falou ele sem tirar o olho da televisão. “Como que uma pessoa consegue assistir tanta análise esportiva”, pensou ela. “Oi!”. Percebeu que ela não devolveu o vocativo “amor” e passou a se questionar se ainda o amava ou se dizia aquela palavra só pela força do hábito mesmo. Mais provável que era a segunda alternativa, mas por hora evitou de aprofundar nessa reflexão. Tinha muito o que fazer, muitas provas para corrigir, aulas para preparar…
Foi na cozinha buscar algo para comer. Que bagunça!!! “Amor, você não lavou a louça do almoço!” E o vocativo saiu, mas sentia mesmo era muito ódio do marido. “Já vou lavar, só terminar o programa aqui”, respondeu ele sem se mover. “Já vou, já vou…é tudo o que ele sabe dizer…nunca vai…”. Como precisava de um pires, ela mesmo começou a lavar a pilha de louças e panelas que se acumulavam.
“Mãe, mãe, mãe, me ajuda com o dever!”, gritou a filha mais velha! “Claro, meu bem!”, tentou responder com doçura já que acreditava que a educação era o grande poder transformador, o melhor que poderia deixar a seus filhos. Mas por dentro, só queria dormir e colocar sua cabeça para esfriar. Não, ela não tinha esse direito….foi fazer o para casa com a filha.
“Mãe, mãe, mãe, estou com fome!”, gritou o filho mais novo. “Amor, você não comprou o pão?”, perguntou atônita ao marido deitado. “Xiii, amor, esqueci, compra lá pra gente”, respondeu o insolente. “Tá!”, respondeu ela, para não render.
Ao sair de casa, olhou para a bolsa, só tinha três reais. “O que se compra com três reais? Mal mal o pão mesmo.” Já estava entrando na padaria do bairro quando viu um bando de jovens passando com bandeiras. Reconheceu um ex-aluno. Pensou em pergunta-lo onde ia, mas antes que o fizesse, este gritou: “Colé, fessora! Tá indo pra manifestação também. Lembro que nas suas aulas você sempre falava que a gente tem que ir pra luta mesmo! É isso que estamos fazendo”. Ficou feliz! Muito feliz! Alguém ouviu alguma coisa que ela disse naquelas aulas enfadonhas! O que ela dissera provocou ação. O rapazinho, junto com seis amigos, parecia muito empolgado em ir aquela manifestação. “Sim, estou indo também. Temos que lutar pelo o que acreditamos, né”, respondeu a professora de supetão.
E ela, como se não tivesse pão para comprar e filho com fome em casa, saiu com o mando de jovens animados, ensaiando palavras de ordem. Ali ela começou a relembrar seus tempos de juventude, quando acreditava na revolução, quando se organizava em Organizações de base, fazia reuniões, comandava os estudantes nas pautas sociais. Tempo bom! Era bom acreditar em alguma coisa. “Mas será que esta manifestação era para o que?”, pensava ela, sem coragem de perguntar aos jovens que seguia, sob o risco de parecer alienada. Como assim? Como ela poderia não saber para o que se lutava?
Continuou andando, com o coração acelerado, quase respondendo aos cantos militantes. Deparou-se com uma multidão, enooooorme. Muito maior do que qualquer movimento que ela já havia participado. Era um mar de gente. Tantos cartazes. Cada um podia escrever suas pautas e reivindicações. “Que democrático”, pensou. Na sua época, apenas os partidos conduziam as demandas. Até pensou em pedir um cartaz para a menina ao lado para escrever também suas pautas. Mas quais seriam? O que ela queria mudar? “Pela revolução interior!”, pensou, mas já se censurou mais uma vez notando seu próprio egoísmo.
Seguiu ali naquela multidão, sem saber ao certo o que acreditava, porque estava ali, seguia, como um peixe no cardume na imensidão do mar. Buscou calar seus pensamentos e entregar-se aos sentimentos que a faziam retornar à crença de um mundo melhor. Sim, isso era bom! Esperança! Mudança! Mobilização! Todos juntos! Sentiu-se animada! Seria a chance de superar a opressão do capital? Sempre acreditou que o povo nas ruas unido poderia modificar a realidade. E eram tantas coisas para mudar, tanta coisa que queria diferente!
Em uma esquina, um grupinho de adolescentes lhe chamou atenção. Pareciam desesperados, aflitos, com medo. Notou algo diferente. Nas mãos, portavam latinhas. “Coquetel motov”, pensou. Mas esses meninos não pareciam ter coragem para atear a bomba. Ficou a meia distância observando os sentimentos daquele pequeno grupo, sem que fosse percebida.
Com um impulso, ela arrancou das mãos de um dos garotos a latinha e pediu o isqueiro. “Vamos lá, me dá logo esse troço aqui! Vamos bota fogo no sistema agora mesmo.” Sem se dar conta do que falava ou fazia, ascendeu e lançou rapidamente o coquetel sobre a faixada de um banco. Tudo explodiu em instantes!! “Nossa, o que eu fiz?!”, sem entender nada, começou a correr gritando “morte ao capital”! Olhou para trás, fogo e fumaça por muitos lados. Parece que sua atitude inusitada estimulou os jovenzinhos outrora medrosos, que começaram a lançar sem dó seus coquetéis por aí afora… várias lojas destruídas….
Correu como louca, não queria ser identificada como transgressora. Mas no fundo sabia que era, e no fundo, estava feliz por ter tido aquela coragem. Continuou correndo até sair da multidão. A polícia chegou, tropa de choque, cavalaria….”O trem ficou feio…”
Respirou fundo, lembrou-se do pão, dos filhos, do marido folgado deitado no sofá…Voltou para casa com seus três reais de pão. Ao chegar em casa, a televisão cobria ao vivo a manifestação. A mídia dizia que alguns manifestantes atacaram o comércio, destruindo as instalações e fachadas comerciais. Eram duras as críticas daqueles repórteres de terno no ar condicionado: baderneiros, anarquistas, drogados, psicóticos…Chamavam de tudo aqueles que tentaram mudar o mundo.
Com um leve sorriso no canto da boca, escondeu seus sentimentos e voltou a sua vidinha inútil, como sentia ao sair da escola naquela tarde. Começou a preparar a janta pensando no coquetel que lançara sem medo. Ela, professora, mãe, mulher, doméstica compreendeu que no final, queria se libertar de toda opressão que sentia, queria que toda mulher fosse valorizada, que todo educador fosse honrado, queria mesmo era fazer a revolução. Mas continuou cortando os legumes…