Um texto de Sofia Nestrovski
Sofia Nestrovski nasceu em 1991 e está tentando aprender chinês.
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Um pouco do que eu penso sobre música
Sou filha de músicos. Passei minha adolescência acordando de mau humor aos domingos porque o conjunto de música barroca da minha mãe tinha chegado e estava na sala afinando seus violinos. Eram as horas preferidas deles para os ensaios, eram minhas horas preferidas para sono inadequado. Eu ficava no meu quarto, escutando de longe, juntando ideias de indignação com ideias de silêncio. Não que eu tivesse outra opção, morando numa cidade pequena de cimento, sol e tédio. Eu me pendurava de ponta cabeça na poltrona, jogava os pés para o alto e esperava o tempo passar. Para assistir às minhas lembranças, convoco o mesmo órgão de percepção que assiste a desenhos animados. Pés para o alto e trilha sonora e o tempo amolecendo. Gosto de me ver assim.
Algumas pessoas pensam como centopeias, cada um dos seus cem pés é uma maneira sutil de entrar em contato com o mundo, e tudo o que elas tocam é o que elas pensam. Eu não. Minhas ideias dão voltas em si mesmas até se cansarem, sobem no ar e esquecem de como é estar em contato com o chão.
Eu assisto a esse desenho animado, meus domingos de adolescência: pendurada na poltrona, meu corpo derrete até que o topo da minha cabeça encosta no solo e ploc. O chão muda de cor, talvez para o rosa, e eu deslizo ainda mais, até meu corpo inteiro se enrolar em forma de rosquinha, ou de gato interessante. O chão vibra em vermelho e é bom olhar em volta, os olhos desacostumados e tudo mais. O conjunto de música barroca continua tocando na sala, insensível à minha condição, e as notas saem de seus instrumentos pelas janelas, encontrando-se com a música dos passarinhos nas árvores. As colcheias e semicolcheias — não, as fusas e semifusas se encontram para dançar, e passam tontas, moles, até abandonarem a história.
Macia como um gato, eu salto pela janela e corro para onde a música não consegue me alcançar, porque ela faz cócegas nos meus bigodes e me deixa indisposta. Eu encontro um riacho num bosque profundo e molho minhas patas só para saber se aquelas são as águas do silêncio, que eu há tanto tempo procuro, ou se devo continuar seguindo mais longe em minha peregrinação. Do outro lado do rio há um homem, e assim que ele me olha, eu me transformo de volta em ser humano, fuóp! ou scric!, e ele me pergunta: “o que você fez de tão errado para vir até aqui se molhar?”. E eu me vejo tendo que me explicar… que não fazia nada de exatamente errado, mas que meu pensamento não é muito bípede. Eu, aqui, que assisto ao desenho, concordo, e olho em volta para ver se os outros telespectadores entendem o que eu quis falar. Do meu lado esquerdo, uma senhora com cara de repolho indiferente assoa o nariz num lenço e guarda o lenço no bolso e volta a assistir.
Na tela, quando eu tento falar com o homem do outro lado do riacho, tudo o que sai da minha boca é ploc plic ploc, como bolhas estourando no ar, porque tinha molhado as patas em vez de pernas, e no lugar de encontrar o silêncio do mundo, tinha encontrado o meu próprio, e já não podia mais falar. O homem que me olhava do outro lado do rio se transforma numa árvore, e eu e eu sabemos, então, que pelo menos algo de sábio ele tinha. Sua cor é eloquente. Um dia, talvez, ele dê frutos.
Eu saio, então, partindo em minha outra aventura, uma que me guia até o lugar onde eu possa reaprender a falar. Eu caminho por muitos anos, muitos lugares. Nome do episódio: a peregrinação do coração. O feitiço se quebra quando eu aprendo a ouvir: a escutar o barulho da grama crescendo, o som que fazem as batidas dos corações dos esquilos — e, em um momento dramático, eu quase morro pela potência do rugido que vive do outro lado do silêncio. Eu e eu ficamos estupefatas com a sabedoria. Cada passo meu de volta para casa é uma palavra devolvida à minha boca. E eu cresço. Palavras e barulhos dentro de mim, eu cresço e fico ampla. Sigo assim, até um dia descobrir o caminho de volta, e me encontrar comigo mesma. É confortável agora, sentar aqui assim, poltrona invertida, cabeça no chão e ideias projetadas na parede, dentro do dentro de mim mesma. Sem limites. Poderia ficar mais.
Nos domingos da minha infância, a saída dos músicos no final dos ensaios era cheia de conversinhas passarinhantes e satisfeitas. Nos momentos que seguem às horas de prática, os músicos do conjunto barroco da minha mãe ficam com a mente colorida e detalhista como os sons que tocam; os barulhinhos que eles sabem produzir com as próprias mãos criam ou encontram gracejos paralelos em seus próprios cérebros. Lembro deles se levantarem vivos, animados, querendo muito conversar. Quando eu percebia que o ensaio tinha terminado, descia do meu quarto, ajudava a carregar os instrumentos até os carros e depois ficava parada em pé, os braços balançando do lado do corpo. Enquanto isso, na casa vizinha, uma lagarta caminhava no quintal. Tentava apanhar uma mosca. Nome do episódio: a costura invisível do mundo. No gramado vizinho, a cabeça da lagarta aparece e desaparece para dentro da grama. Um ritmo só dela. O episódio acaba.