Um comentário inédito e quatro poemas de Adelaide Ivánova
Adelaide Ivánova (1982, Recife) é poeta, fotógrafa, tradutora e editora brasileira. Estudou Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco e Fotografia na Ostkreuzschule, em Berlim. Publicou três livros – autotomy (…) (Pingado-Prés, 2014), Polaróides (Cesárea Editora, 2014) e O martelo (Douda Correria, 2016; Edições Garupa, 2017). Edita o zine anarcofeminista MAIS PORNÔ, PVFR! e escreve uma coluna mensal na Revista Pessoa. Participa de antologias, performances e exposições no Brasil e no exterior. Traduziu, entre outros, Ingeborg Bachmann, Hans Magnus Enzensberger e Paul Celan. Em 2017 fez parte da programação oficial de festivais como FLIP (Paraty, Brasil) e Latinale (Berlim, Alemanha). Vive e trabalha entre Berlim e Colônia.
Ivánova escreveu especialmente para o site Ruído Manifesto uma apresentação dos quatro poemas abaixo, todos de seu último livro, O martelo.
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Dois dedos de prosa sobre o livro – Adelaide Ivánova, 9 de janeiro de 2018
O livro é dividido em duas seções – na primeira, há a voz da estuprada, na segunda, a voz da adúltera. Os três primeiros poemas selecionados pela Ruído Manifesto são da primeira parte, “o bom animal” da segunda. Uma figura crucial quando estava montando o conceito do livro é Constantino, o primeiro imperador cristão. Para Constantino, tanto a mulher adúltera como a mulher estuprada eram criminosas, e teriam a mesma condenação – isso foi há 1.710 anos e ainda se age da mesma forma. Por isso o livro é dividido em duas partes. Eu queria dar voz às duas. Uma mulher que se assume como ser sexual é condenável, assim como a estuprada é condenável (você sabia que Gandhi considerava uma mulher estuprada como tendo perdido sua humanidade? Pois é). Isso das “leis” ainda é uma ilusão. Elas não servem para nada enquanto ainda houver um costume que fale mais alto que a lei. Criamos a lei Maria da Penha – mas e daí?, se os aplicadores da lei acreditam que há uma mulher “protegível” e uma outra, que não merece proteção?
O Martelo tem um muso, que é Humboldt, e que aparece em diversos poemas. Ele é como se fosse o herói do livro e tem o antagonista, que é o príncipe. Humboldt representa a fazeção das pazes com o masculino, com o pau. Ele é uma figura ficcional que condensa e é inspirada em várias figuras reais – os maridos, os amantes, o melhor amigo, o escritor preferido, etc. É o único nome próprio com letra maiúscula, porque ele representa uma figura en-Deusada. Não, tem Henriette Herz, também, que foi o primeiro amor do viajante alemão Alexander von Humboldt, que inspirou o nome do meu herói ficcional. Escolhi o nome Humboldt exatamente pela ambiguidade de sua “heroinice” – o Humboldt da vida real foi um dos pilares da manutenção das estruturas colonialistas europeias, mas ele escrevia sobre anatomia humana e suas viagens com sensibilidade, beleza e paixão. Ao mesmo tempo que sua escrita é encantadora, ele era um sujeito nocivo que não somente vivia em paz com a violência dos Estados colonizadores, como se aproveitava e lucrava com isso. Como o Humboldt da vida real, o d’O Martelo também é uma figura dúbia, escorregadia, que proporciona reflexões emancipatórias, sim, mas que ajuda a impedir essa mesma emancipação de acontecer. Humboldt é, afinal, um homem.
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para laura
em 1998 quando encontraram
o corpo gay de matthew shepard
sua cara tinha sangue por todo lado
menos duas listras
perpendiculares
que era por onde suas lágrimas
haviam escorrido
naquele dia o ciclista
que o encontrou não
ligou logo que o viu pra polícia
porque o corpo de matthew
estava tão deformado
que o ciclista achou ter visto
um espantalho
sábado passado em são paulo
a polícia matou laura
não sem antes
torturá-la laura
foi filmada ainda viva
por outro sujeito
que em vez de ajudá-la
postou no youtube o vídeo
d’uma laura desorientada
e quem não estaria
tendo sangue na boca e na parte
de trás do vestido
laura tem um corpo
e um nome que lhe pertencem
laura de vermont (presente!)
foi assassinada pela nossa indiferença
e pela polícia brasileira
tinha 18 anos
sábado passado.
*
a porca
a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.
*
a mula
“um silêncio amamentado com veneno,
um silêncio imenso”
Paul Celan, tradução de Flávio R. Kothe
mede o valor de seu empenho
e afirmações tendo
como medida o peso que carrega
como boa mula não faz ideia
de quem a monta mas
está a seu serviço
como toda boa mula
empaca na beira do
abismo não morrer
é sua vingança
filomela sem língua
e mula
não pula por ódio
não por por esperança
(e nisso há uma diferença
fundamental).
a mula-lavínia
também teve sua língua
arrancada de lucrécia
mula e adormecida
não arrancaram
nada mas a chantagem
é também uma mordaça
a mula-talia também
dormia quando foi
violada
foi maury e mula
que conseguiu
abrir a boca
e ao virar asno
mudou o próprio
nome e o das coisas
a nova mula aprendeu
alemão e vergewaltigung
deixa de ser o que é
vira um som qualquer
dito com a mesma
entonação que cometa
fúria jacaré passarinho
fósforo procissão pedra
cacto
a mula empacada
quase muda ao menos
nunca foi surda
“até das pedras lhes ouço a desventura”
cada um tem o que diz
a mula em zarathustra
a mula de hilst
mas o rouxinol que canta
é o rouxinol macho.
*
o bom animal
quantos palmos
de largura tem
o seu quadril?
desconfio que
o meu seja
mais largo
ao menos
foi o que senti
ao sentar
em você
queria eu
ter sentado
na sua cara
gentil
como um bom animal
e submissa
como um bom animal
eu me alegraria
com sua língua em mim
e grata
como um bom animal
eu lamberia
sua cara
molhada
pegajosa
cheirando a mim
mas minha língua
minha pobre língua
só lambeu suas
pálpebras
Humbert Humboldt
eu não sou nenhuma
Henriette Herz
me deixe pousar
a cara em seu pau
e me afogar no
silêncio entre
suas coxas e testículos
sua magreza me insulta
Humboldt
mas para cada osso
Humboldt
me deixe lembrá-lo
há a carne
correspondente.
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(Fotografia: vodcabarata.blogspot.com.br/Reprodução)
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