Um trecho de biografia escrita por Mazé Torquato Chotil
Mazé Torquato Chotil é jornalista, pesquisadora e doutora em ciência da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII e pos-doutora pela EHESS. Nascida em Glória de Dourados (MS), vive em Paris desde 1985. É autora de José Ibrahim: o líder da primeira grande greve que afrontou a ditadura; Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985); Lembranças do sitio; Lembranças da Vila; Minha aventura na colonização do Oeste e Minha Paris brasileira. Em língua francesa é autora de L’Exil ouvrier e Ouvrières chez Bidermann : une histoire, des vies.
***
Trecho de Maria d’Apparecida negroluminosa voz
Introdução
Maria d’Apparecida
Tua voz
(…)
É uma voz que vem das entranhas do vento e dos coqueirais,
do sigilo dos minérios e das formações vulcânicas do amor.
Terrestre. Telúrica. Mulher. (…)
Tua voz, d’Apparecida, é aparição
Fulgurante, sensitiva, dramática
e vem do fundo negroluminoso de nossos corações
e vai, e volta e vai,
Maria d’Apparecida do Brasil,
Aparecedoramente cantaril.
Carlos Drummond de Andrade
Maria d’Apparecida é um prodígio. Um prodígio de vocação e de tenacidade. Sua vitória na arte lírica, seus progressivos triunfos na Europa me enterneceram e me entusiasmam – porque pertencem, ao mesmo tempo, ao mundo dos contos de fada e ao mundo duro e cão. Maria d’Apparecida é uma heroína brasileira diante da qual os europeus, antes dos brasileiros, se curvaram.
Guilherme Figueiredo, escritor, compositor, foi adido cultural da Embaixada do Brasil em Paris
Maria d’Apparecida Marques, artista lírica, mezzo-soprano, foi a primeira afrobrasileira a interpretar Carmen na ópera de Paris e no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1965, com muitos elogios. Depois de um acidente, continuou a carreira com a Música Popular Brasileira, uma mudança na continuidade – música não tem fronteira, pensava –, lançando um disco com Baden Powell, em 1977, ela que já emprestara sua voz à música popular e ao folclore nacional. Uma cantora e três estilos: lírico, MPB e folclore popular. Foi na Europa, e sobretudo na França, embaixadora da música brasileira na segunda parte do século 20.
Começou seu trabalho como professora primária, foi locutora de rádio, modelo de escultor e pintor, antes de ser diplomada em canto no Conservatório Nacional do Rio de Janeiro. Sua condição de mulher negra dificultava, para não dizer impedia, que fizesse carreira no país. Partiu para a Europa, fez aperfeiçoamento vocal em Paris e iniciou uma trajetória internacional. Foi amiga de escritores, pintores e tantos outros artistas. Gravou mais de vinte discos, recebeu prêmios e distinções, entre outras a mais importante das honrarias francesas, a Legião de Honra, Légion d’honneur, enquanto Chevalier Officier des Arts et des Lettres, das mãos do presidente da época, François Mitterrand.
Morreu em pleno verão e férias francesas, dia 4 de julho de 2017, sozinha, no seu apartamento, a alguns metros do Arco do Triunfo, em Paris, cidade onde se instalou desde o final dos anos 1950. Morta, correu o risco de ir para uma vala pública, tal como Mozart. Esperou, no Instituto Médico Legal francês, mais de dois meses para ser sepultada. Mãe negra, pai desconhecido de uma família burguesa de São Paulo, foi criada numa família onde sua mãe trabalhava como cozinheira, no Rio de Janeiro, lugar onde nasceu e continuou a viver após a morte da mãe, quando era ainda criança. Nunca se casou, não teve filhos.
História triste e fascinante ao mesmo tempo. Nunca conheceu o pai. Que energias a fez atravessar o Oceano, enfrentar o racismo, vencer as saudades? Que desejos a fez trabalhar para chegar ao ponto em que desejou? Quem é esta mulher cantora que tanto fez para a música brasileira na Europa e especialmente na França e que acabou esquecida nos seus últimos anos? Por que cantava? Como chegou até o sucesso na Ópera de Paris? Quem foram seus amores, o que a fez viver e vibrar?
Além da medalha de cavaleira da Legião de Honra, foi honrada com a Ordem do Rio Branco, oferecida pelo governo brasileiro. Também foi distinguida com a medalha da cidade de Paris por Jacques Chirac; recebeu o diploma de honra e medalha de prata no Concurso Internacional de Música G.B. Viotti, Vercelli (Itália); diploma de honra ao mérito Carlos Gomes (Brasil); medalha Silvio Romero; medalha de ouro do mérito artístico (Rio de Janeiro, Brasil); cidadã de honra do Rio de Janeiro; medalha de ouro da Société d’Encouragement au Progrès (França); medalha Fefieg – Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara; e medalha da ABI – Associação Brasileira de Imprensa.
Quatro de seus discos foram premiados: Chants Brésiliens, com o violonista Turíbio Santos, recebeu o Grand Prix de L’Académie Lyrique Orphée d’Or (1966); The Wonderful Latin American Sound of Brazil (n°2), com o harpista da Ópera de Paris Bernard Galais, obteve o Prêmio Printemps de Suède (1971); Maria d’Apparecida canta o Brasil, com o pianista Wilfredo Voguet, levou o Grand Prix de L’Académie du Disque Français, categoria Música Folclórica (1972); Brasileiríssimo foi premiado com o Grand Prix International Académie Charles Cros (1988).
Para defender sua música, Maria d’Apparecida percorreu inúmeros países. Esteve em Mônaco (recital Monte Carlo, convidada pelo príncipe Albert de Mônaco), atravessou a Europa de Oeste a Leste, de Portugal até a Rússia (Moscou, São Petersburgo, Kiev, Riga, Vilnius, Odessa), passando pela Bulgária (Sofia, Plovdiv, Varna), Itália (Vercelli, Roma, Milão), Alemanha (Festival Internacional de Berlim), Inglaterra, países escandinavos (Noruega, Dinamarca, Finlândia). Foi para a África do Norte (Argélia, Marrocos, Tunísia), Israel (Haifa, Tel Aviv e Jerusalém), sem contar o Brasil e a França.
Maria sonhou, pensou em sua biografia. Começou a escrevê-la com Mara Guimarães, jornalista e sua assessora de imprensa durante muitos anos. Mara foi procurada um dia pela cantora, que lhe disse que tinha resolvido escrever sua história, e que ela seria sua nègre litteraire, como se diz em francês, ou sua ghost writer, como se diz em inglês, a pessoa que escreveria seu livro. A jornalista começou o trabalho recorrendo a cartas, anotações e ideias que a cantora lhe levava. Trabalharam durante uns dois meses. A jornalista estava começando a redigir algo quando Maria d’Apparecida lhe disse que não queria mais e decidiu parar tudo, achando que a história não interessaria a muita gente.
Tempos depois, anunciou num artigo que a história de sua vida estava saindo, tinha até título, Uma Maria que não foi com as outras, negando a expressão “Maria vai com as outras”, ou seja, uma Maria que não se deixava influenciar facilmente. Disse também que a biografia seria publicada na França e no Brasil. Surpreendeu Mara, que não deu muita atenção, sabia que Maria gostava de “arranjar as coisas”, tinha suas estratégias para chegar ao que queria.
Maria d’Apparecida tinha temperamento forte, como muita gente que deseja atingir objetivos, mas que, sem encontrar o caminho aberto, precisa de muita energia. Não era sempre estável, vivia períodos de depressão, e nesses momentos se fechava e não dava notícias. Sobretudo nos últimos tempos, quando cansada, diminuída, sem querer mostrar seu declínio físico aos amigos, suponho, deixou de responder às mensagens e aos telefonemas deles e dos membros da família em que foi criada.
Contar sua história neste espaço é minha vontade, após meses de trabalho de pesquisas em arquivos, localizando e entrevistando seus amigos, membros da família que considerava a sua, entre outras pessoas que a conheceram no Brasil e na França.