Um trecho de Evoé 22, uma peça de Luiz Eduardo de Carvalho
Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor de teatro e redação em alguns dos principais cursinhos pré-vestibulares de São Paulo; chefe de Subsecretaria Parlamentar da Câmara Municipal de São Paulo, publicitário e assessor de imprensa, jornalista editor da Carta Maior na área de cultura, diretor executivo do Instituto Pensarte, assessorou o ministro Gilberto Gil coordenando a comunicação da Teia dos Pontos de Cultura de Belo Horizonte em 2007 (PNC – Cultura Viva – MinC), gerenciou o Espaço Parlapatões em São Paulo. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à produção literária.
Publicou O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica – Ed. Giostri), Retalhos de Sampa (2015 – poesia – Ed. Giostri), Sessenta e Seis Elos (2016 – romance histórico – FCP), Xadrez (2019, romance epistolar, Ed. Patuá), Quadrilha (2020 – novela – Ed. Patuá) e Frasebook (2020 – aforismos – Edições Karnak) e Evoé, 22! (2021 – Ed. Patuá).
Recebeu, entre outros, o prêmio Oliveira Silveira da Fundação Palmares – MinC, em 2015, com o romance Sessenta e Seis Elos; o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2016, com o romance Xadrez; o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura, em 2018, o Prêmio Maria Clara Machado (1º lugar) no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira dos Escritores e o Prêmio Aldemar Bonates do Concurso Literário Cidade de Manaus 2019/2020, com a peça teatral Evoé, 22!; o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura, em 2019, com o conto Um Conto de Réis (e de Rainhas); o Prêmio por Histórico de Realização Literária da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, em 2020.
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Enquanto sai o Dr. Otto Salgado, retorna o coro dos escravos que, a seguir, diminui de volume e quase some sob as falas.
Faustino Sucupira – Arre, estou farto desse semideus. Infame. Indigno. Torpe. Vil. (na pausa, olham-se) Vem, agora que ele saiu, deixa te abraçar pelos teus anos. Aquele monstro mantém-me como prisioneiro para a execução dessa malévola simbiose entre nós e tu bem que corroboras. Como podes fazer isso comigo? Tu serás o alvo das chacotas entre nós, depois de consumada nossa obra. Onde se imaginou um poeta coadunado com esse crime aqui perpetrado contra outro poeta! Que mundo sem solução. (desfaz-se o abraço, olham-se nos olhos) Sejas feliz, muito feliz meu amado algoz, nesta e em outras vidas que puderes ter!
Diego Mercúrio – Deixa de lamúrias. Que crime? Estás maluco? Não concordaste com a cláusula de sigilo e com o secretismo da natureza desta operação? Ele também me avilta com sua aristocracia eclesiástica, com o perfil dândi, com o discurso afetado. Mas aqui atendemos a uma hierarquia de opressão. Você depende de mim e eu dependo dele para o intento comum aos três. E, no mais, é ele quem sustenta nossa Mostra, que está ficando consistente, linda, urdida em um evento feito para culminar com nossa obra exibida no palco. Os balés já ensaiam, o canto está lindo. As falas, precisamos terminar as falas de uma vez por todas…
Faustino Sucupira – Estou prisioneiro neste quarto escuro e mal arejado há semanas, apenas pude comunicar-me por meia dúzia de cartas censuradas, datilografadas com palavras diversas daquelas em meus rascunhos e trazidas para eu assinar. Não sei onde estou, nem por que tanto tormento eu passo se é tudo uma mera simulação! Não há uma janela, um relógio… Decerto, concordei com os termos dessa aventura artística sem tipificação, mas, mesmo consentido, esse cárcere fictício causa-me os efeitos deletérios de uma prisão verdadeira. Hás de convir, meu irmão, a situação não é nada normal e já duvido de que lado da sanidade eu mesmo me encontro neste instante. Somente hoje, por conta de teu aniversário, recobrei a noção do tempo desse exílio.
Diego Mercúrio – Sim, és a bucha do canhão, mas acalma-te. Terminamos quase tudo. Em breve, estaremos exultantes com o resultado desta nossa hercúlea tarefa. E, no mais, foi exatamente em tal isolamento que não encontraste a distração, exceto essa criada por tua mente mal-acostumada aos vícios do que chamas de liberdade.
Faustino Sucupira – A liberdade é distração mesmo quando estamos privados dela. Aliás, mais do que distração, nesse caso, torna-se obsessão. E fica difícil, sem ar, manter a chama em ardor para outra paixão.
Diego Mercúrio – Faustino, tu estás, para todos os fins e conforme combinado, num claustro na Universidade de Navarra para receberes instrução acerca do pensamento, língua e arte espanholas tradicionais, de acordo com o que todos os teus parentes, amigos e conhecidos sabem e têm atestado pelas cartas que recebem de ti. Além disso, eu não devia, mas antes de virmos, confidenciei-te que o a viagem e o curso alardeados eram uma fachada para teu isolamento e para a execução de nossa missão histórica, e o fiz em tempo hábil para declinares, mas tu aceitaste as circunstâncias como previstas pelo doutor Otto para essa situação que agora se encerra em relativa harmonia. Seremos nós os autores da obra que apresentará o pensamento e a estética do nosso grupo em oposição à Semana de Arte Moderna.
Faustino Sucupira – Usas o plural com tamanha convicção que quase me contagias.
Diego Mercúrio – Claro, o pensamento é nosso, é nossa a proposta de que a transcendência da vanguarda está na síntese dialética entre o novo e o antigo. Não foi a isso que nos propusemos? Trilhar um caminho sem rupturas maniqueístas com os ensinamentos clássicos de nosso ofício? Ou acaso conseguirás tirar Shakespeare de tua alma, ou Cervantes, ou Camões? Jamais te purgarás dos mestres que te constituíram as bases de teus saberes. Sei o que Baudeleire fez a teu espírito com a perfumada embriaguez de suas flores do mal! Mas aquilo não constituiu a tua base, não aponta a tua origem, apenas insinua um potencial ponto de ruptura com ela. (retoma os papéis sobre a mesa) Vamos recomeçar? Estou muito ansioso pelos toques finais.
Faustino Sucupira – Se assim queres acreditar, disponhas do otimismo, meu bom Diego… Mas insisto em dizer que discordo dos métodos do doutor Salgado, tu bem o sabes.
Diego Mercúrio – E é por isso que estás aqui, a fim de transformares o que nele há de refratário em confeitos apetitosos para as pessoas que pensam como nós e oferecem-lhe as mesmas resistências. Senão em confeitos, ao menos, em remédio palatável. Ele é a tradição e, se não quiseres a ruptura que os outros propõem, lutemos pela consecução de nossa cabível síntese e evoluamos com ela. (faz o gesto que esfrega indicador contra polegar a indicar dinheiro)
Faustino Sucupira – Maquiador de tiranos, eis o que nos tornamos! Daqui mais uns anos, leiloaremos nossos talentos para vender desnecessidades a favor do lucro dos patrões! Hoje, personalidades e seus ideários; amanhã, bugigangas, espelhinhos e miçangas em bancas populares! Seremos os pregoeiros a vender com poesia! Mas eu entendo a missão maior: tu queres que eu molde uma nova persona, uma máscara pública para a ideologia indigesta do Dr. Salgado. E eu farei, o pior é que eu farei, tu sabes que sim! Farei, pois os modernistas precisam saber que há uma terceira via! Sempre haverá. Que a ruptura não é a resposta e que as vanguardas, em si, sem o conhecimento do passado, são vazias e inócuas, repetitivas e enfadonhas e que, assim postas, tornam-se meros campos de experimentações já experimentadas. Nenhum deles me ouviu. Riram e caçoaram de mim e de meus versos! Arre, modernistas!
Diego Mercúrio – Agora falta bem pouco. A imensa pressão sobre teus ombros já se dilui! Nosso crescente afastamento aos polos de nossas crenças, experimentado nos últimos dias, dissolve-se na obra que compusemos e assinamos e datamos para a eternidade. Os demais serão consecutivamente esquecidos, talvez apenas não em decorrência da irreverência que marca esse modismo mascarado e barulhento. A Semana de Arte Moderna é apenas um Carnaval de uma lagarta aristocrática a exibir suas novas e coloridas asas burguesas num espasmo final de metamorfose. Nesse reino, contudo, eles são meros foliões e tu o único e eterno coroado Momo, com um braço dado à modernidade e o outro segurando o cetro da tradição! Seremos imortais, meu irmão, imortais. Nós dois, lado a lado. Evoé, Faustino Sucupira! Evoé!
Faustino Sucupira (rindo-se da cena projetada pelo entusiasmado Diego Mercúrio e também do que dirá a seguir, gesticula com os dedos) – Sim… desde que sejas tu do lado de cima ou do lado direito! E eu a segunda bandeira a bater-te continência. Tudo subordinado ao pai-de-todos e ao doutor fura-bolo!
Diego Mercúrio (retribui com o gesto do onanismo masculino) – Antes bater-me continência do que uma pivia! (ambos explodem em riso) Ora, ora, ora, e se fico eu à direita, não te queixes de ficar na tua preferida esquerda! (terno) Ah, enfim eu coloquei uma risada escancarada nesta fria face de mármore! E, então, vamos à arte e ao engenho? Refleti muito acerca da abertura e do primeiro ato. Começamos com A Cavalgada das Valquírias, certo? E depois…
Faustino Sucupira (retorna à cumplicidade criativa num átimo) – Não. Wagner, nunca. Jamais. Que maçada! Já debatemos este tópico. No início, pretendemos impactar com a ideia do fim de um ciclo para o retorno triunfal da vida a partir dos elementos deixados pelo ciclo anterior, lembra-se? A cada volta na espiral, maior a evolução do pensamento. É Core, mas ainda é Perséfone… Sugiro enfaticamente que usemos enxertos do Prelúdio ao Entardecer de um Fauno, de Debussy; seguido de outros de A Sagração da Primavera, de Stravinski. A Cavalgada das Valquírias assemelha-se a uma marcha militar barulhenta e triunfante. O balé inicial requer leveza, o triunfo da vida é sutil, não marcial. Core e não Ares…
Diego Mercúrio – Debussy eu concordo e é bastante negociável. Stravinski não. As coisas russas ainda repercutem muito mal enquanto o terror corre solto por lá.
Faustino Sucupira – Alto lá com a discriminação, deixe a ideologia um pouco alheia à escolha estética. Pense na força da Sagração da Primavera, depois do crescente inicial, explodindo os tímpanos na onomatopeia da modernidade, das máquinas, motores, sons urbanos, trens, teares, as repetições das cordas sem sínteses, quase barrocas, os metais em antítese, gemendo-se em ais e em contemplação incomodada e incômoda. Stravinski depositou, nesta obra, toda a verve musical do futurismo que se anunciaria nas repetitivas, densas e ásperas palavras do exaltado Marinetti. E note o título apoteótico, pois trata-se mesmo da sagração de uma força gerativa, da raiz natural, matriz primeira de qualquer essência que possamos aspirar ser. É disso que se trata, Debussy e Stravinski, música de vanguarda sim, mas feita do mesmo material furioso dos mestres. Acaso ouviste o que o maestro Villa-Lobos apresentará no encerramento da Semana? Aquela música obviamente misturada aos sons das coisas, música de caboclos que nada tem de eruditas. São agradáveis ao ouvido, mas melhor se prestariam a cantigas populares de ninar ou a fundo para orações e ladainhas. Isso, mesmo que carregado de brasilidade, não é música clássica. Nunca será. E se o intuito é o de sermos nacionalmente eruditos com apelo popular, exaltemos e entronemos de uma vez por todas o maxixe de Nazareth!
Diego Mercúrio – Não imagino o que ele apresentará, mas concordo contigo baseado no que o maestro já mostrou até aqui. Mas não nos distraiamos, não podemos aspirar sermos russos, não neste momento da História: Stravinski está fora. E nem ouse reintroduzir o ininteligível e intragável Schönberg na pauta!
Faustino Sucupira – Alto lá, camarada! Alto lá. Ininteligível não, dodecafônico. Intragável não, atonal! Mas concordo, jamais será popular!
Diego Mercúrio – Pois é! Ainda prefiro a modorra do canto gregoriano das missas do mosteiro de São Bento. (ri-se) Que tal o Coro dos Ferreiros de Verdi?
Faustino Sucupira – Não, isso já tem sete décadas de pó sobre a partitura! Enxerto de Debussy e Ravel. O que acha?