Um trecho de novela de Jeanne Araújo
Jeanne Araújo nasceu em Acari, Seridó potiguar, em 1968, e mora atualmente em Ceará-Mirim, onde é membro da ACLA – Academia Cearamirinense de Letras e Artes. É professora, poeta e escritora. Publicou os livros de poesia Monte de Vênus (edição da autora), Corpo vadio (Editora Penalux) e a novela Cercas de Pedras (Editora Penalux), além do romance Combustão (Penalux) em parceria com o escritor e jornalista Cefas Carvalho. Integra diversas coletâneas e antologias de Concursos Literários regionais e nacionais.
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Trecho da novela Cercas de Pedras
A volta
A estrada ziguezagueava tanto que me dava enjoos. A poeira subia e infiltrava-se nas minhas narinas e nos meus olhos, transformando-se numa cortina de pó diante do automóvel. A seca – pensei. Minha terra estéril estava também dentro de mim, me consumindo, me aniquilando. Senti um misto de prazer e horror. Prazer por estar de volta. Horror por não saber como reencontrar-me com as tardes cinzas e quentes do meu sertão.
O medicamento que me deram antes de sair da casa de saúde me deixou sonolenta e a camisa de força deixou meus braços dormentes. Não me importo. É o preço que eu pago por ser louca. Que me importa? Sorrio histericamente. Enfim, estou de volta ao negro começo da tortura. Olho as árvores secas passando em toda velocidade pela pequena janela da ambulância e finalmente sou vencida pelos fortes soníferos.
De manhã – acredito ser manhã por causa dos pássaros negros – acordo e tomo meu desjejum – um chá de camomila, alguns biscoitos e mais medicamentos. Joana, minha enfermeira e acompanhante, contratada por meu filho para cuidar da mãe louca, me avisa:
– Coma tudo direitinho, Blanche, depois trago seus papéis.
Meus papéis, minha única alegria, meu único alívio nesses anos todos. Com as mãos trêmulas, me ajeito devagar na cama e faço meu desjejum. Engulo meu ódio, minha dependência e minhas drogas. Rosa despetalada ao vento – escrevi no diário que preciso fazer – ordens do médico para que eu pudesse sair do manicômio. Escrever uma espécie de diário pra ver a quanto anda minha loucura. Vejo-me no reflexo do espelho na parede. Ainda sou bonita. Olho então para Joana com um olhar desafiador e astuto.
Acordo sem saber exatamente que horas são. Há um silêncio profundo pela casa. Reparo que o espelho foi retirado do quarto. Não me importo, contanto que não me tirem os livros e meus papéis. Agora estou tentando levantar-me e minha cabeça roda. Malditos remédios. Devagarinho ando, arrastando os pés pelo chão e segurando-me nas paredes até a janela. Estou em uma espécie de sítio ou chácara. Deve ser a chácara que meu filho, deputado federal, comprou para esconder a mãe louca. Sei que fica em Florins. Nasci e vivi aqui toda uma vida. Pelo que vejo, morrerei também aqui. Com que Florins se parece? Como uma cidadezinha tão seca pode ter nome de flor, de jardim? Se eu olhar pela janela, o que vejo? Cinza, silêncio e solidão. Mais espinhos que pássaros. Mais cruzes que pedras. Não há flores. Apenas cercas e camisas de força.
Diário
O amor me emudecia. Ficava parada, olhando seu corpo e o acariciava, tocava todos os seus vãos, pele aveludada. Tinha ímpetos de mordê-lo em todos os lugares, vontade de deixar minha marca e demarcar território, o meu território. Ele ria quando eu falava isso. Brincava e dizia que era de todas e não era de nenhuma. Mas que eu o tirava do sério, que só comigo ele sentia tanto prazer, que só comigo ele casaria, se um dia tivesse coragem. E eu, acreditava. Acreditava em tudo o que ele dizia e prometia. Boba, achava que aquilo fosse amor. Isso foi antes de eu descobrir que ele era casado. Professor de línguas e casado. Pai de três filhos lindos. Inúmeras amantes. Escritor inveterado. Boêmio. No início, eu guardava meu amor todo em latinhas e a cada dia eu dava um bocadinho a ele. Queria que ele se acostumasse aos poucos, mas, depois que eu descobri sua verdadeira identidade, eu me dei aos borbotões, eu quis esse homem para mim a qualquer preço.
Quando nos encontrávamos, o tempo era muito pouco pra nos amar e conversar sobre literatura. Amava o jeito certinho dele organizar tudo para mim. Líamos livros, romances, poemas, bebíamos cerveja ou vinho, e entre uma coisa e outra fazíamos amor. Adorava o jeito com que ele me comandava na cama. Ele me dizia ao ouvido obscenidades e eu me entregava àquele amor mundano e prazeroso como ele me conduzia. Agarrava-me o cabelo de forma bruta e possessivamente me possuía. Gritávamos de prazer e de desejo. Gemíamos. Entregávamos-nos com sofreguidão e lascívia. Eu o amava profundamente. O homem. O literato. O todo dele. Ser sua amante me deixava tonta de felicidade enquanto estávamos juntos. Ao ir embora, a tristeza tomava conta do meu ser, porque tínhamos que voltar cada um pra sua vida. Ele me amava, apesar de não entender isso. Apesar de lutar contra isso. Apesar de não perceber isso. Éramos uma coisa só: literatura e desejo. Escrita e erotismo. Estávamos atados pelo sexo pelo resto da vida.