Um trecho de novela de Kaio Carmona
Kaio Carmona é professor na Universidade Agostinho Neto e no Centro Cultural do Brasil em Angola (CCBA). Pós-Doutor em Poéticas da Modernidade. Doutor em Estudos Literários pela UFMG, publicou os livros Um lírico dos tempos (Scortecci, 2006), Compêndios de amor (Scriptum, 2013), Para quando (Scriptum, 2017), 26 poetas na Belo Horizonte de ontem (Fino Traço, 2020) e A casa comum (Quixote+Do, 2020). Possui vários artigos publicados e organizou, junto com Vera Casa Nova e Marcelo Dolabela, a coletânea Entrelinhas Entremontes: versos contemporâneos mineiros (Quixote+Do, 2020).
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Fragmentos iniciais da novela A casa comum, de Kaio Carmona, publicada pela Quixote+Do em setembro de 2020. O livro se divide em duas partes: “ela” e “ele”
ela
cansei. pronto. é isso. ponto final. já não suporto mais, já não dou conta. é isso. o amor acaba. não tem mais jeito. o amor realmente acaba. todo livro tem a sua última página, o último parágrafo. é preciso atribuir os devidos créditos ao filme que se encerra, sair da escuridão da sala. é sabido, é esperado. antes disso, as estratégias. aprende-se a ler com mais calma, deixa-se de ir ao cinema. mas mesmo em casa a cena tem de chegar ao fim. as diversas possibilidades do enredo já foram pensadas, inventadas, testadas, e quaisquer delas levam ao mesmo lugar. agora posso ter a certeza. a certeza de meu momento. o que sei agora é o que sou agora. um epílogo. uma constatação. cumpro um destino. etapas que um dia pensei existir, mas passavam distantes como notícias. palavras que orbitam em torno de um mesmo eixo e que apontam para um mesmo sentido. o fim. e é claro que imaginei isso um dia. o fim. devaneei. sonhei. fiz o exercício. rezei a cartilha da história. vislumbrei vãos e trilhas. repeti as mesmas palavras até me acostumar com o peso e o gosto na boca. as arestas e na outra ponta os buracos. feri de propósito a língua e achei que conhecia bem a densidade de meu sangue. apalpei nervosa o amanhã. não fui a primeira e não serei a única. mas não achei que esse dia chegaria tão rápido no meu calendário (o calendário e a sua falsa impressão de futuro). e que teria de ser meu o gesto. a ruptura. o corte. o voto de minerva. que teria de ser eu a moldar os contornos da palavra não. expeli-la calmamente. em ritmo. cadenciado. medindo a curvatura da boca para melhor desenhá-la no ar, como peixes em aquários. deixar cair do queixo a palavra e apresentá-la como um cartaz, um aviso, faixa de protesto, ao menor sinal de dúvida. eu, que fui forjada para o sim, moldada para o sim, agora sigo em contramão. sou eu a matar de vez o amor. cortar seus últimos vestígios de vida, ver o fôlego findar-se, suspenso no ar. eu, a assassina. eu, o monstro. eu, a autora da ferida. mas insisto, cumpro um destino. a vida útil do amor, o prazo do amor. cansei. preciso sair e andar.
ele
e o que fazer com apenas duas mãos e um bilhete? o que fazer quando percebo que estou diante do amor e de seu fim? quando ainda há amor. a impossibilidade de ficar mesmo sem saber como sair. mesmo quando os laços estão puídos, e que, é nítido, os últimos gastos fios estão prestes a se romper. mesmo esgarçado, o laço prende, aperta, sufoca. e é tão doloroso quanto começar a amar. mal-acabado. ainda cheio de arestas, borrões e respingos de tinta pelo chão. farpas que nasceram para a superfície translúcida da primeira pele doem a qualquer contato. palavras repetidas. a sentença sabida, como a herança esperada sem nenhum testamento. o amor. o amor e o seu destino de arquivo, gavetas e álbum de fotografias. uma nuvem de poeira. neblina. um museu fechado pela sua inauguração. o amor e a fadiga da lembrança. o amor e o cotidiano esforço para esquecer, esquecer e esquecer para tornar a lembrar. palavras persecutórias essas. os mortos nunca enterram seus mortos, ficam a lamber os ossos ainda que o cheiro lhes embrulhe o estômago. a lembrança, no amor, é uma de suas pernas, a outra manca em compasso. o amor já não pode mais sonhar o trabalho que era, a força que era. é um pretérito. como são os sonhos quando nos lembramos deles. palpável distância. outra vida. de fora, observo agora. de óculos. o amor entra na multidão e se perde. o amor perdido no centro da capital de seu país. não traz mais a roupa rota e não expõe seus andrajos, nem se destaca pelo traje exótico. apenas segue pela rua trocando as pernas, tropeça e para, cai, ergue-se orgulhoso e recomeça a andar. atravessa de um lado a outro na rua em balanço bêbado, esbarra em passantes sem se desculpar. o amor nunca foi gentil.