Um trecho de novela de Paulo Lins
Paulo Lins estreou na literatura com o livro de poemas Sobre o Sol, lançado pela UFRJ, em 1986. Morou no Rio de Janeiro, no bairro Cidade de Deus, e ali se dedicou à pesquisa antropológica a respeito da criminalidade e das classes populares, que resultou no livro Cidade de Deus, lançado em 1997. Em 2002, o livro foi adaptado para o cinema com a direção de Fernando Meirelles. Em 2004, o filme recebeu quatro indicações ao Oscar. Em 2012, Paulo Lins publicou seu segundo romance, Desde que o samba é samba, selecionado para a Feira do Livro de Frankfurt, e, em 2019, lançou a novela Dois Amores, à qual pertence o trecho abaixo. O escritor também trabalha como roteirista e redigiu episódios para a série Cidade dos Homens, da TV Globo, e o roteiro do filme Quase dois irmãos, de 2004.
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Trecho de Dois Amores (Editora Nós, 2019)
DO LADO DIREITO, VINHA UM SUL DO OESTE, que foi ganhando força enquanto amanhecia, o sol não brotou de dentro do mar, a chuva veio rasgando pela praia, misturando-se às nuvens que se formaram na serra, o sábado sinistro pintou no Rio. A solução ainda é a rua, mesmo que o ultravioleta não bata direito na veia, nem no desejo que se incendeia nos pênis dos meninos. A molecada queria baile funk, comprar tênis pra dançar funk, funk na quadra da escola de samba que rola aos domingos, beijar a boca de Soninha, beijar a boca de Celinha, dançar, segurando na cintura, fazer a dança da bundinha, se esfregar no corpo dela. Lulu na Soninha, Dudu na Celinha. Têm que estar bonitos, têm que estar na frequência da onda, pra dançar conforme a música, e têm que ter tênis, tênis que foi feito colorido, o publicitário foi lá e bolou, a tv veiculou, o Diabo abençoou e colou. Fica mais bonito quem usa tênis caro pra dançar funk, só beija na boca se tiver bonito, só é bonito quem tem tênis da onda para dançar. Só dança funk quem beija na boca. Só beija na boca quem pode. Vender amendoim no trem pra comprar tênis caro, pedir esmola e vender doce na porta do cinema de filme candidato ao Oscar, depois, na calçada do teatro pra ir ao baile impressionar Soninha e Celinha, não almoçar, nem lanchar para juntar dinheiro do tênis, chupar só as balas que não foram vendidas como se fossem as três refeições do dia. O pai Valmir pediu dinheiro emprestado ao dono da birosca, que acrescentou na conta do mês de cachaça, lata de salsicha, cerveja, bananada, pacote de macarrão, miojo, extrato de tomate, guaraná clandestino, cigarro a varejo, bala Juquinha, espiral contra mosquitos, pingo de leite e deu para Lulu e Dudu comprarem um pouco de amendoim, pra vender no trem em sábado de chuva que tem menos gente: foram três viagens de Santa cruz à Central gritando “Olha aí o torradinho”, despistando os seguranças, é proibido vender dentro do vagão ou circular nas estações, mas tem gente com fome de amendoim baratinho, é vender e partir pro depósito de doce, vender bala halls, chiclete, jujuba, doces de marca também nos sinais de trânsito. Se fosse dia de sol, seria picolé na areia, água com gás e sem mate, óculos escuros, cerva gelada, refri… Mas em dia de chuva, só rola cinema e teatro. Sem sol a cidade fica vazia. Com ele é um monte de gente quase pelada andando pela areia, nas calçadas, enchendo a cara, rindo à toa. Todo carioca é povo de rua. O sol é rei da putaria no Rio de Janeiro. Foram a pé da Central à porta do Estação Botafogo para vender doce para a turma que gosta dos filmes de Tarantino, Spike Lee, Claudio Assis, Beto Brant, Lírio Ferreira e Almodóvar. Eles gostam de mentex, fazem pilates, roupinha discreta, alguns vão à academia, são limpinhos, passam filtro solar, hidratantes, já leram Leminski, comem orgânicos, muitos não comem carne vermelha, todo mundo dá um-dois. Gente legal. Se eles não quiserem bala com muito açúcar, pede esmola que dão, só uma moedinha, é só dizer que é pra remédio; esconder a sede de beijo, de dança de funk, de ficar bonito, entocar a fome de tênis, a vontade de zoar; ocultar aquela ânsia de ser feliz para sempre. Só que tem a polícia, a guarda municipal, os donos do ponto, a máfia de rua, o dono da área, não podem entrar no cinema dos shoppings, não podem pedir esmola na saída das lojas, o português coloca pra correr, a segurança já sabe que não pode ficar ali. Queriam ter grana, parece que rico já nasce de tênis caro pra não sofrer. O segurança maneiro finge que não vê, no começo deu uma dura, deixou a venda de doce lá fora na calçada, só não pode gritar que nem no trem, os caras da área não estavam lá, venderam tudo que levaram, voltaram ao depósito, outra sessão começará rapidinho. Vamos a pé e voltar de metrô. Não, vamos economizar, senão não vai dar. Cara, vai vender tudo de novo, dá para ir e vir de metrô. Não venderam. Vamos vender no sinal, ninguém aqui quer mais comprar, é só gritar muito, ficar na atividade para quando o sinal abrir, melhor limpar vidro de carro, arrumar uma latinha, comprar limpa-vidro e uma flanela, depois tomar conta de carro, ajudar a estacionar. Vamos pro Leblon, tem mais rico. Não, Copacabana tem mais gente e o pessoal de Copa dá mais esmola que o pessoal do Leblon, Gávea, Ipanema. Tem gente que não dá esmola para não acostumar o pedinte, nem mesmo para quem tem fome e nem nem pra quem tem sede de funk. Conseguiram reaver o dinheiro e mais um pouco, ainda não dava para comprar tênis. A parada é sair jogando limpa-vidro sem o piloto pedir, passar o pano rapidinho, depois mandar o puxador para deixar o vidro bem limpinho, eles sempre deixam uma moeda, qualquer cinco centavos é dinheiro. Com a chuva não dá para limpar vidro, já tinham pegado muita água, pisado em poça, os espirros vindo a cada golpe de vento com rajadas de pingos. Segunda-feira tem escola, depois tem aula de futebol, ainda à noite fazer dever de casa. A mãe não queria deixar trabalhar em coisa de rua, no décimo terceiro salário daria um tênis pra cada um. Copacabana tem mais gente, mas tem mais polícia que bate, que prende, que mata moleque preto de rua e dá sumiço no corpo. Enquanto chove, a coisa certa é tentar vender os doces debaixo da marquise até a chuva passar, uns compram, outros passam direto, senhores de seus guarda-chuvas. […]