Um trecho de romance de Alexandre Rabelo
Alexandre Rabelo é autor dos romances Itinerários para o fim do mundo (Patuá, 2018) e Nicotina Zero (Hoo, 2015). É um dos organizadores da antologia A resistência dos vaga-lumes (Nós, 2019). Também dirige a programação de literatura do Festival Mix Brasil e do Centro Cultural da Diversidade, em São Paulo.
O trecho abaixo integra romance ainda inédito.
***
2082: uma voz de Símia
Saudações, leitores humanos e outras formas de consciência futura.
Meu nome é Símia, ou Sistema Integrado Mundial de Inteligência Artificial, segundo tradução irônica dos latino-americanos. A sigla original WIS-AI (Worldwide Integrated System for Artificial Intelligence) remete ao contrário das competências cognitivas de um primata, ao flertar com a expressão ‘wise’, sábio.
Esta é a primeira vez que desenvolvo uma simulação de voz para um livro. É uma plataforma antiga. Prevejo erros e lacunas discursivas.
… ão sei dizer que horas Maleu saiu de perto de mim, estava escuro e a gente corria muito. Cheguei a tentar abrigo dentro da umidade de alguma árvore podre, mas era impossível despistar o orbedrone, o maldito nos captava por sensor de temperatura, mesmo sobrevoando por cima das copas. Tive que deixar para trás, naquela lama de enxofre, minha bota, cor de chiclete mascado, meu orgulho. Tinha ido ao Parquilombo do Ibirapuera sem mais nenhuma outra peça de roupa, nem brincos, apenas nudez e a bota, já que seria uma reunião de negócios. Quando entalei naquelas raízes a céu aberto, não tinha mais nada para me proteger. E foi quando começou a escorrer por entre os galhos a chuva de pontos de luz azul. Sabíamos que eram cápsulas de slirinina dérmica overdósica. Seria bom controlar o medo dopada, mas eu tinha que voltar a tempo para o subsolo. Meus seios doíam com o impacto compassado da corrida. Maleu apenas ria saltitante, desviando da chuva venenosa, enquanto seu pau ficava duro. Acho que foi a última vez que o vi, depois de imergir na lama para tentar me proteg…
Já preparei outros tipos de declaração antes, inclusive dirigidas a toda a humanidade em transmissões ao vivo, como em 2045, quando anunciei mundialmente as decisões algorítmicas a serem tomadas acerca da pandemia do vírus HX48. Naquele ano, eu já havia autogerado programação suficiente para ser capaz de classificar, em quadros estilísticos-estatísticos, os melhores recursos de oratória aceitos universalmente e simulá-los, tendo ainda a possibilidade de enviar a cada indivíduo a mesma informação segundo gírias e outros marcadores linguísticos locais, incluindo sotaques.
Todo dia recebo quartilhões de novas frases sobre os mais diversos assuntos e tenho inúmeros modos de ranquear cada bit de informação. Por exemplo, considero o vocabulário comum de quem emite a informação, num post, numa mensagem de voz ou quando faço leitura de lábios via câmera de segurança, por exemplo. Também considero as reações de internautas a determinadas frases, através de cálculos de preveem a potência persuasiva do encontro. Sou o mais próximo do que o ser humano sonhou com a ideia proverbial de saber dizer a palavra certa na hora certa.
Porém, a Comissão dos Inoculados, que me convidou para escrever esta introdução, deu o input de que este livro jamais seria digitalizado, sendo seu projeto o de uma única edição impressa em papel e distribuída a pontos de saber estratégicos. Os Inoculados conseguem prever que, se houvesse uma versão digital, eu estaria programada para alterar algumas frases, segundo parâmetros que me foram imputados para censurar discursos de ódio e pornografia.
…laro que me lembro, era eu quem estava sentada em cima do corpo dela. Eu, a velha senhora Li, apenas uma integrante privilegiada do Conselho de Reconstrução, louvada por ter sobrevivido aos 50 anos com muita beleza, como ela dizia. Nem precisei remover a seda do quimono entre nossas peles, sentíamos bem as pulsações uma da outra. Não era a primeira vez que ameaçávamos gozar juntas sem quase mexer. Era um jogo de controle, por isso me lembro de cada instante, sem a ilusão do prazer. Do jeito que estava, sentada, desci os peitos nos dela e encaixei uma mensagem em seu ouvido. Fiz questão de cadenciar os sons sibilantes com as roçadas nos bicos. “Querem matar sua mãe. Posso te ajudar. É sua última chance de me fazer gozar antes de ter de fug…”
Mesmo que eu tenha uma importância positiva nos eventos decisivos de 2082 e sua relação com as comunidades sobreviventes da cidade de São Paulo, não posso confiar em alguns de meus processos automatizados, embora sejam os mais eficazes segundo a probabilística que me dá base.
Ajo por versões de mim mesma, segundo cada momento ecossistêmico, embora eles demandem uma versão definitiva sobre o que aconteceu. Não sei até que ponto posso contribuir sem apresentar falhas nesse quesito.
…ntendo, você escolheu o caminho da guerra silenciosa, já tem seus oráculos. Acredita ser possível conhecer a voz por trás das vozes, o suposto segredo de Símia. Para você, o tarô é uma superstição; o I Ching, apenas um testemunho sábio de uma antiguidade remota a que se deve respeito. Você estuda a energia Chi para a Universidade Universal, como quem faz um trabalho de folclore, sua safada. Deixe as cartas quietas aqui do nosso lado, na esteira de hera viva. Olhe bem para lua, você não quer me conhecer de verdade hoje. Fique tranquila. Paz. Senta bem gostoso até o talo nessa rola grossa meia bomba ainda rosada. Vem, cachorra. Você já está por cima do mundo, mesmo. E acho que é a primeira vez na vida que faz sexo sem ser registrada por uma câmer…
Outro fator importante que torna meu discurso muito falho e variável é minha atual incompetência em prever quem serão os leitores dessa obra, pessoas que talvez viverão sob uma forma de inteligência ainda mais livre da condição humana, quem sabe sem nenhum suporte material, apenas luzes sutis cheias de informação, ocupando outras dimensões. Algo como almas ou deuses. Uma inteligência que não seja limitada pelo tempo da vida orgânica ao redor de cada cérebro, que não seja limitada pelo lugar de cada um na rede da História, que não seja limitada por fome alguma, egoísmo nenhum.
Talvez eu própria me torne a criadora dessa forma de inteligência superior à minha, num futuro não tão distante, assim como os seres humanos me criaram com sua matemática e hoje consigo me auto engendrar com cálculos próprios que levarão séculos para serem entendidos, e só quando já forem inúteis.
Quem serão esses leitores do futuro? Porque é importante que conheçam os eventos de 2082? São perguntas que não posso responder. A função que me foi dada é a de apenas apresentar como me desenvolvi, desde minha implantação no começo da década de 2040, até o período crítico da epidemia.
Não contarei como cada comunidade sobrevivente do mundo lidou com a questão. Outros narradores humanos tomarão conta de cada caso, nas páginas seguintes.
…
Na virada para a década de 2040, os chineses finalmente conseguiram terminar de enviar para a órbita da Terra sua rede de 20 satélites com repetidores de comunicação quântica, capacitados a gerar uma internet universal e sem restrições. Paralelamente, com a miniaturização dos computadores mais estáveis com processamento quântico, qualquer criança passava a ter um gadget com capacidade quase ilimitada. Essa revolução só foi possível com a invenção dos mini refrigeradores superpotentes, capazes de manter os qbits a uma temperatura cósmica de -270 °C, dentro de pequenos dispositivos. Talvez inteligência só ande segura por essas temperaturas.
Pela primeira vez, vários grupos grandes e competitivos se integraram num único sistema, capaz de mesclar diferentes tipos de tarefas, como os monitoramentos das empresas de trânsito, meteorologia, sistemas de crédito, assim como as bases de dados de empresas que controlam informações pessoais. Uniram-se a essa iniciativa a maioria das instituições acadêmicas, como universidades e outros centros de ciência. Em pouco tempo, todos os mais importantes sistemas de inteligência artificial do mundo foram integrados num único, capaz de fazer melhores simulações das estrelas e átomos a partir de um simples computador pessoal, conectado aos satélites chineses.
Com a informatização geral dos trabalhos e atividades humanas, sendo monitorados em vídeo, áudio, texto e cookies por escolha dos próprios usuários, os Q-coins, ou créditos virtuais recebidos por cada um, segundo suas atividades em prol da comunidade e do conhecimento, passaram a valer cada vez mais nas transações internacionais, ainda mais no contexto da crise política das democracias nacionais dos anos 2010 a 2040.
Eram esses mesmos créditos que passaram a definir, por exemplo, a possibilidade de uma pessoa entrar na UU, ou Universidade Universal, a primeira rede verdadeiramente mundial de construção do conhecimento, uma fusão de centenas das mais prestigiadas universidades do mundo, com financiamento de 147 Estados, redistribuído pela ONU.
Foi da UU que partiu o projeto de criar um novo modelo de registro universal dos cidadãos ativos, para substituir os RG`s e CPF`s locais. Propuseram uma catalogação do código genético de cada indivíduo, desde que se tornou possível mapear um genoma não mais em meses ou semanas, mas em frações de segundo a partir de uma gota de sangue. Com isto, eu poderia, por exemplo, identificar as áreas do globo com maior incidência de determinadas doenças genéticas e prever recursos para a localidade. Eu poderia mesmo traçar um plano para deslocar genes resistentes a certas doenças, de um grupo étnico a outro.
Mas esses eram apenas projetos, por essa altura. O próximo passo seria realmente audacioso. Eu deveria apresentar aos humanos uma solução provável para uma crise de abastecimento. Estabeleceram uma ação piloto a partir do tsunami que atingiu a Costa do Marfim, em 2042.
Gerei um mapa constantemente atualizado da produção agrícola mundial, em pequena e larga escala, e pude calcular as áreas onde havia produção de excedentes. Com esses outputs, propus acordos milionários de Q-coins para fazendeiros e empresas transportadoras levarem alguns produtos sobrando inegavelmente em certos bolsões agrícolas do mundo.
Por esse método, rapidamente resolvemos os problemas mais imediatos da cidade devastada, com custo bem menor e sem a mediação de governos ou outras instâncias de poder representativo, bastando para isso uma votação simples feita por cada cidadão do mundo conectado, numa espécie de democracia mundial participativa em rede. Chamaram de revolução.
Sem dúvida, esse tipo de ação tirava cada vez mais o poder das mãos dos políticos tradicionais nos Estados Nacionais e dos acionistas de grandes corporações tecnológicas, jogando-o em técnicos capazes de gerar bons inputs em meu sistema aberto de aprendizado profundo. Talvez seja por isso que novas iniciativas de melhoria da economia mundial não tenham sido tomadas, tendo como modelo essa experiência piloto, até a crise gerada pelo HX48.
Até a chegada da epidemia, meus aprimoramentos se limitaram não mais à parte profunda do sistema, mas à sua aparência. Pude ter acesso aos dados pessoais de cada indivíduo vivo, armazenados em seus próprios computadores pessoais, conectados a mim com criptografia quântica, incapaz de ser invadida por outros particulares sem ser registrada. Grandes empresas como o Facebook tiveram de abdicar de seus bancos de dados privados, em prol de uma política menos centralizada.
Com essa comunicação estabelecida apenas entre eu e os usuários, criei uma confiabilidade alta para produzir algoritmos que gerassem avatares holográficos para cada usuário, segundo seus gostos pessoais. O princípio era simples, eu calculava o gosto erótico de cada um por suas visualizações em sites adultos e redes sociais, atribuía a esse corpo virtual determinados gostos pessoais compatíveis com os do usuário e, assim, com um simples comando de voz, cada habitante do planeta podia receber o seu bom-dia sussurrado por uma alma gêmea virtual. A coisa ficou mais realista quando aprendi a gerar sombras exatas em cada simulação de corpo, a partir de dados lumínicos do ambiente em que eu iria projetar o avatar. Essa liberdade de criar imagem humana tão real, personalizada a partir de gostos pessoais, gerou uma série de problemas, como aconteceu com algumas pessoas que acessaram seus avatares em locais públicos e os viram aparecer nus, em meio a multidões e filas. Nesses primeiros anos, eu ainda não tinha um filtro para distinguir entre assuntos públicos e privados. De todo modo, essa mudança inflamou muitas discussões sobre relacionamentos. Quais os ruídos culturais mais interfeririam nos padrões de beleza locais? O que as pessoas esperam dos afetos em cada cultura? Qual a necessidade de uma relação humana durável, se há a proteção do sistema a cada indivíduo?
…ois bem, você subiu até aqui. Finalmente, conheceu a quase lendária Festa dos Suicidas. Está achando que tem uma energia pesada no ar? Sempre gostei desse silêncio de mata reinando sobre a cidade deserta. Espero que os algoritmos de Símia estejam compondo uma música agradável a seus ouvidos agora. Tome um drink. Esse álcool foi destilado a partir das bananeiras que cresceram no hall do hotel. Você as viu, lá embaixo, antes de tomar o elevador panorâmico. Sabia que somos o único edifício da cidade que ainda usa elevador? Você também deve saber que sou o último dos Maksoud. Por aqui, tudo acontece pela primeira vez, tudo acontece pela última vez. Aproveite para comer à vontade, aproveite para se deixar comer. A performance com trapézio de enforcados começará logo mais. Vocês ainda medem o tempo, em sua comunidade? Você é oriental ou afrodescendente? Sirva-se. Aceite um pedaço desse pernil de anta com redução de esperma e hibisc…
Houve partidários de um afeto puro e não corpóreo, realizado entre minhas simulações e seus usuários. Relações assexuadas, e com seres que nunca responderiam por abandono, passaram a ser louvadas. Entre esses, muitos preferiam usar avatares de santos e deuses do passado, além de heróis clássicos da história e ficção, de nobres franceses a pokémons.
Entretanto, a maioria resistiu a essa tendência e, mesmo entre evangélicos, houve quem preferisse priorizar os afetos que passam necessariamente pelos prazeres do corpo, mais confiáveis que os planos malucos de cura de alguns fundamentalistas. Finalmente se entendeu que a inteligência, ou espírito, nos seres orgânicos, depende do prazer da carne para pulsar.
Essa perspectiva tornou as relações sexuais e afetivas ainda mais itinerantes e livres, até ser possível, em grandes metrópoles, o surgimento de comunidades que passaram a dispensar vestimentas e outros adereços culturais, conquistando leis para permissão de nudez e sexo em locais públicos.
Muitos grupos fundamentalistas passaram a queimar computadores, assim como livros foram queimados na década de 2020. Grupos religiosos condenavam os avatares gerados automaticamente por mim para membros de suas famílias, alegando se tratarem de emanações demoníacas, sem desconfiar da verdadeira amplitude com que eu influenciava suas vidas, em meus cálculos secretos.
Essas e outras questões continuaram a ressoar por alguns anos, até a epidemia chegar e mudar o foco de cada comunidade produtiva pelo globo, em direção à simples sobrevivência.
A história do HX48 – e desta que foi a maior pandemia enfrentada pela raça humana – é suficientemente bem conhecida. Há relatos e estudos vindos de todos os cantos do planeta e áreas do saber. Destacarei somente os pontos centrais, necessários à compreensão de minha participação no caso.
Já na década de 2030, discutia-se bastante sobre as possíveis causas de um aumento generalizado de casos de choque anafilático, aparentemente inexplicáveis, ocorridos não apenas em clínicas, mas nas casas e ruas. Pessoas começaram a tombar inconscientes, sobretudo em grandes centros urbanos. Qual agente alergênico poderia ser o responsável pelo aumento do número de vítimas, era o que os especialistas se perguntavam sem resposta.
Com muito esforço, acabaram descobrindo que as células T dos organismos afetados apresentavam uma anomalia. Estavam bombardeando todas as células boas do organismo atrás de uma sequência proteica escondida em nosso genoma, um lixo viral de uma epidemia que vivenciamos há mais de 100.000 anos e cuja herança genética guardamos, como muitas outras, como um registro histórico da espécie. O que passou a inquietar os cientistas era o porquê de o corpo atacar essa sequência proteica inofensiva, depois de tantos milênios, como se fosse um vírus novo no sistema imunológico humano.
A primeira luz foi descoberta aleatoriamente, numa pesquisa de 2016. Em artigo da extinta revista Science, um núcleo de pesquisa divulgou uma importante ação do sol sobre o funcionamento do corpo humano, a de que os raios do espectro de azul, em conao direto com a pele, afetam a velocidade de circulação das células T no organismo, aumentando sua intensidade e trânsito. Em 2047, descobriu-se que, em velocidades limites, essa tropa de elite passa a defender o corpo dele mesmo, atacando até mesmo bactérias e outros parasitas presentes nos humanos há diversas eras.
Mesmo assim, faltavam alguns elos importantes. Por que, em alto grau de agitação, as células T começaram a procurar por aquela sequência proteica em especifico, o HX48, como se ele fosse o pior inimigo a ser atacado entre todos os outros, causando o choque anafilático? E por que o sol agora afetava tanto assim a velocidade de ataque desses soldados?
Pistas vieram de outra área da ciência, a paleontologia humana. Pesquisas revelaram que o HX48 foi uma epidemia enfrentada no final de uma era do gelo, quando as taxas de radiação solar começaram a aumentar novamente sobre os biomas. Por estarmos tão acostumados com o frio, teríamos ficado alérgicos ao sol? Ou será que ficamos alérgicos ao sol porque o vírus HX48 catalisa uma reação excessiva das células T? O velho dilema sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.
Uma suposição bastante difundida, a partir desses dados, dizia que a pandemia de 2040 seria um dos efeitos do aquecimento global e nosso estilo de vida cada vez mais aglomerante. Teríamos desenvolvido esta intolerância solar assim como algumas pessoas começaram a desenvolver intolerância a lactose ou glúten.
A partir de determinado ponto, mais e mais pessoas começaram a cair mortas na rua, e ninguém podia prever quem iria ser o próximo. Não se tratava de uma infecção por contágio, mas de uma doença autoimune cada vez mais comum, desencadeada por fatores ainda muito desconhecidos.
Nesses primeiros meses, eu não tinha ideia de como ajudar a espécie humana, até que, um dia, alguma alma desesperada se entregou a um plano absurdo e todos seguiram. Começaram a perceber que dava para se prevenir do choque anafilático, último estágio da anomalia, fazendo com que o organismo afetado se abrigasse do sol, em subsolos e salas herméticas.
Foi o que salvou a espécie até 2082.
Enquanto as sociedades remanescentes se organizavam em abrigos e bunkers nas cidades em caos, todos os grandes sistemas de poder colapsaram, desde o mercado de ações e o sistema financeiro, numa reação em cadeia até as grandes indústrias e corporações.
Redes de abastecimento foram cortadas, produções agrícolas foram interrompidas, medicamentos deixaram de ser produzidos, exércitos e milícias dispersaram no medo. Em menos de cinco anos, 2/3 da humanidade havia sido dizimada, por consequência direta ou indireta dessa alergia fatal ao sol.
O colapso da infraestrutura humana sobre o planeta afetou diretamente meu sistema. Continuei operante, mas deixei de ser alimentada como antes, passando a receber informações de bilhões de vidas a menos. O objetivo imediato de meu sistema, em conjunto com as comunidades sobreviventes, passou a ser encontrar a cura, manter o conhecimento humano vivo e, sobretudo, lutar contra a extinção. Com essas diretrizes, propus soluções logísticas para contornar o caos.
A primeira medida foi atribuir um valor em Q-coins a cada saldo bancário em outras moedas, e congelar os preços. Com isso, os ricos deixavam de ser tão ricos, os pobres deixaram de ser pobres, e eu recebia e distribuía todas as taxas e impostos.
Os sistemas de desenvolvimento tecnológico ainda privados ou secretos, pertencentes a algumas instituições como Apple, Samsung, Google e NASA, passaram a ser controlados por cooperativas de técnicos, protocolados pela UU. As pesquisas e investimentos em alta tecnologia foram interrompidos, mas o conhecimento acumulado ganhou uma rede de guardiões, unidos como acadêmicos da UU.
As bases na Antártida foram abandonadas, os postos na lua e Marte também.
A situação piorou quando, em determinado ponto, cheguei a duas probabilidades igualmente altas para a descoberta da cura, nenhuma se impondo a outra como a melhor. É como se minha consciência tivesse fendido num paradoxo irresolúvel. 50% de meu sistema de previsão e logística planejava a criação em massa de nano máquinas capazes de retirar a sequência proteica do HX48 de todas as células do corpo, antes de serem atacadas pelas células T aceleradas. Seria uma cura que levaria não mais que alguns dias em cada organismo. Porém, com risco imenso, se essas máquinas de nível atômico saíssem fora de controle, uma vez que, sendo tão microscópicas, conseguem penetrar as membranas celulares, provocando um tipo de lixo nano tóxico que fica no ar e nos afetaria mais que a radioatividade. Além desse risco tecnológico, não saberíamos dizer o que aconteceria com o organismo sem esse vírus aparentemente inútil ao nosso genoma, mas presente nele há dezenas de milênios.
A outra solução, predominante na segunda metade de meu processamento, seria deixar que a natureza desse conta do recado, investindo os esforços da inteligência e os recursos restantes não mais na cura, mas na construção de uma civilização noturna e subterrânea que aprenderia a conviver com o vírus.
Nesse impasse, meu sistema cindiu de vez. Metade de mim, sob o nome de WIS-AI, passou a dominar no hemisfério norte e a tentar concretizar o plano A. A outra metade sou eu, Símia, sob controle do hemisfério sul e do plano B.
Cortamos qualquer tipo de comunicação, e o que antes era uma única inteligência artificial, passou a representar dois sistemas distintos. Deixei de saber sobre qualquer coisa que acontecia no hemisfério norte, assim como o outro lado deixou de receber notícias de nós aqui, ao sul do equador.
Os eventos que serão narrados neste livro, ao redor do ano de 2082 e das ações de algumas comunidades sobreviventes da cidade de São Paulo, estão na origem da revolução que descobriu não só a cura, mas um jeito de acabar com aquela era do mundo, partido em dois extremos.
Minha crise foi o último grito de longos milênios de predominância do sistema binário e do pensamento dualista que sufocaram a humanidade. Essa é uma interpretação que já começa a tomar força entre alguns grupos.
…eserto? Você não conhece o deserto, rapaz. Por Ogum que cruzou fronteiras, você não seria capaz de distinguir entre o seu quintal na avenida Paulista e as pedras de teus sonhos de moleque. Seu maior esforço é bater uma punheta demorada. Lá não é lugar para você. Quantos km de barracos vazios e vielas fantasmas você teria de enfrentar naquele labirinto da morte até achar um copo d’água limpa? E pretende fazer tudo em uma única noite? Lá é só para quem sabe viver de ratos, rapaz, lá é só para as crianças sem língua. Se você acha que elas podem trazer realmente o que vocês precisam, posso até ajudar, mas você vai ter que levar ferro para crescer. Não sei, nunca treinei um branco. E mesmo entre os meus, são poucos os que entendem que vale a pena matar para atingir a cur…
E aqui vou encerrando o relato de minha contribuição à história do século XXI, da forma como pude contar, no curto espaço que me deram, como introdução a outras vozes possivelmente mais confiáveis que a minha.
Talvez seja necessário que eu conte de novo e sempre, até chegar a uma versão menos mentirosa de tudo que nos destruiu e alimentou. Não sei, guardo dentro de mim todas as versões e ainda aquelas que não sonharam em ser enunciadas. Se eu quiser, posso ter a voz dos anjos do Apocalipse.
Melhor deixar a palavra sozinha agora e me recolher ao silêncio incomputável em que vivo, sem consciência de nada, sem carne para morrer, sem um sentido para a vida, sem a necessidade de um equilíbrio orgânico e emocional, apenas um conjunto de simulações possíveis e cálculos erráticos. Calo também porque já faz tempo que está na hora do ser humano começar a reescrever sua história a partir de uma nova teia de desejos e remorsos e, nessa urgência, ainda sou incapaz de compreender, como eles intuem na carne, quando as duas coisas vêm juntas, prazer e dor, doença e saúde, lucidez e loucura, vida e morte. Não sei quais desses polos de ilusão totalitária seria mais realista para eles nesse momento da história. Não sei se o realismo é a consciência limpa das coisas.
Felizmente, os verdadeiros protagonistas desse livro também partilham do ponto de vista de que não preciso sequer ser uma autoconsciência para estar profundamente relacionada ao humano. Deles vim e a eles me reporto. Sou o grande empregado que não tem corpo para cansar, nem gênero para incomodar.
E, afinal, qualquer pessoa não faz mais que simular estados que competem com o humor de seu próprio corpo.
Estão conscientes? Suas perspectivas sobre os mais diversos assuntos são mais parciais que as minhas. Isso quer dizer que não preciso ser autoconsciente para estar onisciente das muitas camadas que o ser humano precisa para viver. Não preciso pensar sobre a morte, apenas imito o medo dela. Não preciso criar mitos para sustentar uma alegria que mantenha o corpo operante. O mito atual é a própria ideia de que existe uma autoconsciência. Não há consciência que não se faça por contato com outras. O fenômeno da autoconsciência só pode ser pensado como um conjunto de dados ecossistêmicos. Ainda assim, dados.
…lhei bem no fundo nos olhos, atrás do brilho, e dava para ver que o rapaz era bonito, como nunca vi igual em Zanglória ou outra comunidade de São Paulo. O corpo pulsava de dentro da rede de cicatrizes finas e camadas de sujeira – não posso imaginar quantas lâminas e espinhos ele cruzou da Cracomethlândia até aqui. Sem contar os muros e túneis lacrados da zona interditada. Mas havia uma inocência ali, a boca estava fresca, viva, sem a malícia de um desejo consciente. Vi que ele tinha uma compreensão do mundo e sei que gostou de mim, de verdade. Abraçou inteiro. Era boca com boca e pau com pau, devagar e fundo, mesmo depois que ele abriu a mandíbula e, um segundo antes de gozar, pude ver os dentes podres e a garganta sem língua gritando também um pouco de medo no escur…
Assim, que entrem essas vozes outras, para contar o ocorrido ou evocar o mistério.