Um trecho de romance de Alexandre Rolim
Alexandre Rolim é mato-grossense de Tangará da Serra. É autodidata, repórter de jornais, sites, rádio e TV desde 2004, ator e diretor de teatro. Embrenhou-se na escrita incitado pelos livros que devorou nas bibliotecas das escolas por que passou, influenciado por professoras de língua portuguesa e pelas experiências com a comunicação. Como repórter do Diário da Serra, em Tangará da Serra, foi autor de diversos textos publicados nos livros Memória, produzidos pelo jornal em 2012 e 2013. Projetos do Teatro Ogan, de Campo Novo do Parecis, e da Biblioteca Nacional o levaram para as aldeias Paresi-Haliti, onde teve contato com a cultura, as tradições, os costumes e os mitos do povo Paresi-Haliti. Atualmente, é acadêmico do Curso de Letras da UNEMAT de Tangará da Serra. Seu romance Tikare alma-de-gato (Carlini & Caniato, 2017) venceu o 2o. Prêmio Mato Grosso de Literatura na categoria Revelação. Abaixo, seguem a sinopse e um trecho do romance.
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Sinopse
Tikare alma-de-gato conta a história de um pequeno índio da etnia Paresi-Haliti, que habita o imenso Chapadão do Parecis. O indiozinho, de 14 ou 15 anos, vive momentos de aprendizado de sua própria cultura, costumes, tradições e mitos de seu povo, repassados tradicionalmente de forma oral de geração em geração. O enredo se desenvolve em uma aldeia imaginária na cabeceira de um rio na primeira metade do século XVIII, onde reina a paz e tranquilidade entre os indígenas coletores, caçadores e pescadores. De repente, em meio a essa paz, o Reino dos Haliti é surpreendido pela chegada dos não-índios, bandeirantes que estavam em busca de riquezas minerais e mão-de-obra escrava para trabalhar nas jazidas de ouro e diamante. Tikare, o pequeno índio, se vê em meio a ocorrências que podem transformar a história de seu povo para sempre.
Palavras de Marta Cocco sobre Tikare alma-de-gato
Tikare alma-de-gato é uma ficção que registra/recupera histórias, mitos e práticas de um povo indígena que vive no imenso Chapadão do Parecis-MT; propõe uma reflexão sobre os modos de contato entre indígenas e não indígenas e sobre a necessária garantia de espaço para a vida dessas comunidades. Cumpre a tarefa necessária de formar leitores conscientes da importância da diversidade cultural do Brasil e do mundo. É um livro para todas as idades, mas, em especial, para o público juvenil.
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Um dia de caça
Nas aldeias dos ariti, quem fazia quase tudo eram as mulheres. Elas plantavam a roça e socavam o milho, ralavam a mandioca, faziam a chicha, preparavam a comida, fiavam o algodão para fazer as zamatas, faziam o artesanato de casca de pequi e palha de buriti e cuidavam dos filhos. Os homens, bem, os homens caçavam e pescavam, construíam as hatie, as peneiras de tiras de buriti.
As crianças, meninos e meninas, apenas brincavam.
Mas quando os meninos já estavam mais crescidinhos podiam acompanhar os pais nas caçadas. Tikare não via a hora de crescer e poder ir à caça com os zanekoare. Os zanekoare eram os caçadores da comunidade. Toda wenakalati tinha pelo menos três caçadores. Na aldeia de Tikare eram quatro, um deles seu pai. O menino nem acreditou quando o pai chegou e lhe falou: – Você vem com a gente hoje.
Preparou seu arco e flecha, um jiquí, para caso fossem também pescar, um pouco de fumo e um bocado de carne de ema. O pai o observava de longe, quando viu o menino abusando dos apetrechos se aproximou e ensinou-lhe como era a tradição. – Hoje você não come, disse.
Explicou ao filho que, quando saem para caçar, os zanekoare não comem: só fumam tabaco e bebem água. – É para manter o costume, disse. Tikare devolveu a carne moqueada de ema e se contentou apenas em levar as armas. Quem iria ligar para comida se naquele dia caçaria ema, seriema e se dessem sorte até um veado campeiro.
Os outros meninos da aldeia ficaram só olhando Tikare desaparecer no meio do buritizal. O sol recém tinha nascido, apenas um feixe de luz aparecia entre as folhas de buriti. A mãe, apesar de aflita e preocupada, desejava em pensamento sucesso ao filho: que nenhum caititu machuque meu pequeno guerreiro. Olhou, também, pelo vão da hati, o menino desaparecer, suspirou e voltou aos seus afazeres.
Daquele momento em diante não mais pentearia os cabelos, não varreria a casa e não pintaria o rosto. Acreditava que assim ajudaria o marido e o filho a se camuflarem no meio do mato: assim nem veado, que é bicho esperto, poderá vê-los. Era costume e tinha que ser respeitado. Ao pé da letra.
O sol já estava alto quando Tikare e os outros chegaram ao campo aberto. Logo, pegadas frescas de veado apareceram e todos ficaram quietos, só faziam gestos com as mãos e os beiços. Ali começaria a caçada. O mais experiente sentiu o vento, tinham que rodear, pois com o vento à favor, o bicho farejaria o grupo e se esconderia na mata fechada. Andaram por meia légua, em semicírculo, e se colocaram do lado oposto: – deve estar perto, cochichou o mais velho, e foram ao encontro do animal.
Alguns passos e avistaram em meio aos arbustos o lombo amarronzado do veado campeiro, que pastava tranquilamente capim-dourado. Era um dos grandes, com chifres de palmo e meio. O bicho, apesar da camuflagem dos predadores, levantou as orelhas como quem sente o perigo, farejou e ficou imóvel, armado para a fuga: o vento mudou, sussurrou um dos caçadores, que ainda tentou armar o arco, mas era tarde, o velhaco fugiu, saltando entre os arbustos. Ágil, o veado se perdeu na mata fechada. Tikare suspirou, como de desânimo, mas foi encorajado pelo pai a não desistir, pois a caçada tinha recém começado.
O sol estava a pino, ardia na testa. O grupo continuou a caminhada e quando já era quase meio do dia avistou ao longe um bando de emas. Umas vinte ou trinta: grandes, pequenas, machos, fêmeas e filhotes. A cena se repetiu. Todos quietos trocavam olhares e gestos. Precisavam preparar uma emboscada. Dois rodearam pelo oeste enquanto os demais seguiram de gatinhas até bem perto das presas. Com o arco em punho o pai passava as instruções para o filho: devemos caçar os machos para deixar as fêmeas terminarem o choco.
Tikare armou-se de uma flecha e esperou o momento exato para o ataque. De repente, todos avançaram de uma só vez contra o grupo e dispararam seguidamente várias vezes contra as aves. Tinham que ser rápidos, pois emas são velozes e um erro terminaria por fracassar com a caçada.
No ataque, três emas foram abatidas: uma delas por Tikare. O menino não conseguia esconder a alegria, mas também para quê esconder, teve sorte de em sua primeira empreitada já impressionar o pai e os outros zanekoare. Só pensava em como seria recebido na aldeia: o novo caçador.
Contaria aos primos, aos avós e aos pássaros, claro que contaria aos seus amigos. Eles ficariam afoitos, mas entenderiam que aquilo era para o alimento da família. Depois de comemorar a caçada bem sucedida, o grupo apanhou as presas e seguiu de volta para a aldeia. Precisavam ir logo, antes que o sol se punha.
Ao se aproximarem da aldeia o pai de Tikare tomou a frente do grupo, parou, deixou o bicho no chão, retirou as penas maiores, que serviriam como matéria-prima para o artesanato, e ateou fogo na mata. Era mais um ritual que os ariti faziam para anunciar o sucesso na empreitada. Do pátio alguém avistou a fumaça e chamou outros dois companheiros, todos jovens, para irem buscar a caça.
Naquela noite haveria festa na comunidade. Os animais foram transportados até a porta da hati do cacique e ali seriam divididos entre os membros da aldeia. Os homens preparavam a fogueira para assar a carne enquanto as mulheres coziam os miúdos. Tudo era aproveitado, seja para comer, seja para fazer as peças que ornamentam a família. Antes do banquete, assados e cozidos eram oferecidos as yámakas para a consagração: partilhar para nunca faltar.
Sob a lua e a beira do fogo sagrado, os ariti aproveitaram a noite de festa, regada a ema assada, beiju de mandioca e chicha de milho. A festa se estendeu até o amanhecer. Tikare contou incansavelmente a todos, por várias vezes, a mesma história: como havia caçado pela primeira vez. Quase não dormiu, sorrindo sozinho no canto da hati, olhando pela fresta no teto, o filete de luz da lua que lá no céu parecia um grande caroço de pequi.