Um trecho de romance de Alexandre Staut
Alexandre Staut é editor de livros, escritor e artista visual. É autor de Paris-Brest (vencedor do Gourmand World Cookbook Awards e finalista do Prêmio Jabuti), que traz memórias dos anos em que trabalhou como cozinheiro na França. É o idealizador e o editor da revista literária São Paulo Review.
O texto abaixo é o capítulo 8 do romance O incêndio (2018, Folhas de Relva Edições).
Na quarta capa se lê: “Narrado por um bibliotecário, este romance evoca os últimos suspiros de uma
biblioteca decadente, prestes a ser incendiada.
Aqui, o universo dos livros é pretexto a uma viagem literária que coloca em relevo toda a complexidade de nossa banal existência.
A estrutura mise en abyme conduz grande parte da narrativa, estabelecendo um constante diálogo entre os mundos ficcional e realístico – cujas fronteiras acabam por se romper. Dessa fratura surge o olhar crítico do autor, que por uma escrita do cotidiano – apurada e minuciosa – não perde de vista o contexto sócio-histórico contemporâneo.”
***
8. A visita de um garoto
Retomo a noite passada com Pessoa.
Já não sei mais se um garoto real ou imaginário me visitou. Não sei se é um fantasma da adolescência, se foi Guilherme, Fernando, ou se saiu de um livro de Roberto Piva, Silviano Santiago, João Silvério Trevisan, Alexandre Vidal Porto.
Tudo começou com duas batidas discretas na porta de casa. Eu vestia uma saída de banho, os cabelos estavam molhados. Levava a escova de dentes nas mãos e tentei escondê-la logo que avistei, na penumbra, parte do rosto do visitante.
“Entre”, eu disse, dando passagem. Senti-me como um Verlaine. Um Verlaine dos confins do mundo, mas cheguei a pensar que estava na Bélgica do começo do século passado.
Olhei as expressões faciais do rapaz. Não era nenhum Rimbaud. A cabeleira caía sobre sua testa. Passei os dedos na sua cara, afastando o cabelo, de modo que conseguisse ver os olhos, e eles eram sombrios. Depois, olhei para as calças, como se procurasse um possível revólver que trouxesse na cintura, um frasco de veneno, sei lá. Falam que o “boa noite, cinderela” já chegou por aqui (o que talvez seja um louvor a um lugar sem emoções fortes).
Mas o rapaz cheirava à inocência. Olhou no fundo de meus olhos. Tentou puxar a minha saída de banho.
Sem dizer qualquer palavra, passeou pela sala, olhou os quadros, um a um, dois ou três desenhos figurativos que ganhara de um pintor da cidade; um retrato de família; a foto em PB em que apareço ao lado dos colegas da prefeitura, numa festa de fim de ano.
Quando se sentou, puxou as minhas mãos, para que eu ficasse em pé, na sua frente. Mais uma vez tive a sensação de que eu era Rimbaud, um Rimbaud desconfiado.
Abriu o nó na frente da saída de banho. Deixei a escova de dentes cair no chão. Fechei os olhos. Ele fazia um barulho estranho com os dentes, mas eu não conseguia olhar para baixo, na altura da minha cintura, para ver como operava a mandíbula.
Quando acabou o trabalho, aí sim abaixei os olhos, mas não o encontrei. Vi a porta da rua entreaberta. Senti um perfume herbal barato dissipar-se na noite. Peguei a escova de dentes do chão e amarrei a saída de banho, com um nó.
Eu era Verlaine, poderia recitar uma dezena de seus versos. Voltei para o banheiro e olhei-me no espelho. Sim, eu podia ser um poeta francofônico, e o visitante era Rimbaud.
Fiz meu chá de valeriana e deitei-me, escolhendo o livro mais próximo, na pilha do criado mudo. Eu dormiria poeta, com as pernas moles, tinha a sensação de quem acaba de tomar um cálice de vinho do Porto. E então adormeci.
Na manhã seguinte, quando o despertador soou, encontrei três livros abertos na altura do peito. O evento da noite anterior era real. Só podia ter sido real! Mas como o rapaz teria chegado à minha casa? Não sabia mais se convidara um dos frequentadores da biblioteca. Olhei para o relógio. Deixei o pensamento passar.
Tomei um banho morno, e, como de costume, troquei-me, dirigindo-me à biblioteca, como se nada tivesse acontecido.