Um trecho de romance de Claudio Daniel
Claudio Daniel é poeta, tradutor, ensaísta e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo (CCSP), diretor adjunto da Casa das Rosas e colunista da revista CULT. Atualmente, ministra aulas de criação literária via internet, no Laboratório de Criação Poética. Seus últimos livros de poesia publicados são Cadernos bestiais (2019), Marabô Obatalá (2020) e Fuyú, poemas de inverno (2020).
O texto abaixo é um fragmento do romance Mojubá, que será publicado em março pela editora Kotter. É o primeiro romance de Claudio Daniel.
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Mojubá
(fragmento do romance)
Tião-Bastião conheceu Zanha Ossanha, caboclo que vivia sozinho numa cabana, nos fundos profundos do mato, no depois-do-lá-longe. Passarinho me contou que ele era bruxo, e mulher do passarinho confirmou. Zanha Ossanha nunca ia à cidade, nunca via ninguém, ficava escondido de todos, por causa da deformidade física dele. Uns diziam: Zanha Ossanha tem três pernas, foi vontade de Deus que ele nascesse assim, coitado, e fica sempre sentado fumando cachimbo, o Deserdado-deste-mundo. Outro passarinho me contou, e a mulher desse passarinho confirmou, que Zanha-Ossanha tem uma única perna e usa dois bastões de carvalho para caminhar, essas eram as três pernas dele. Porém, o senhor acredite, tudo isso são histórias que o povo e os pássaros contam, são imaginações de gentes que têm pouco o que fazer, cabeça vazia, oficina do diabo, e o tinhoso, o senhor sabe, come cu de curioso. Eu vi Zanha-Ossanha em pessoa, de olhar nos olhos um do outro, e ele é assim como eu e o senhor, tem duas pernas, dois braços, uma cabeça, vinte dedos, nem dezoito, nem dezenove, gosta muito de cachaça de alambique, fuma cigarro de palha, usa um lenço verde-esmeralda na cabeça, tipo bandana de japa-samurai-kamikaze, e passa horas cuidando de sua roça: ele cultiva alecrim, peregum, benjoim, abre-caminho, alfazema, são-gonçalinho, manjericão, garobinha, arruda, aroeira, guiné e muitas outras ervas, com as quais prepara chás e banhos, além de plantar mandioca e outras coisas de se comer. Há folhas que são meninas e folhas que são meninos, o senhor sabia? Pergunte a Zanha-Ossanha, se um dia o senhor se encontrar com ele, o que muito duvido, o senhor não tem coragem de ir até lá, no fundo-dos-escuros-da-mata. Cada folha tem um orixá, uma cantiga, um axé, mas apenas Aquele-que-é-o-dono-da-cabaça sabe o poder de cada folha.
Pois bem: aconteceu que um dia Bastião-Tião-Tiãozinho, numa de suas caminhadas no meio-do-sem-fim, encontrou o bruxo de três pernas, que são duas pernas, que não são uma só perna, e o caboclo-das-folhas ofereceu a ele uma bebida, que na verdade era uma poção mágica – foi isso que ouvi da Tia Maria Menina, que não mente nunca. Zanha Ossanha ofereceu a ele um chá esverdeado e o mano-das-matas caiu de amores pelo caboclo-das-folhas, em loucuras de amor-de-amor. Tiãozinho não pensava em mais nada, em ninguém, não queria fazer nada, nem labutar nos roçados, nem pintar quadros, nem nadar no rio, só ficava largado na rede, bestando, olhando no à-toa, no além-do-não, como se quisesse roubar estrela ou pescar nuvem no céu. Mainha Janaína perguntava o que tinha acontecido, e ele só murmurava sons que ninguém entendia, ficava de cara amarrada, camarada amuado, com jeito de quem viu boitatá dar cria na floresta. Num março desses, ou num abril, talvez num maio, já me falha a desmemória, Tiãozinho entrou na mata e sumiu, ninguém sabe, ninguém viu, e ele foi até a cabana de Zanha-Ossanha, no afã de ficar com o namorado, de não voltar nunca mais, de ficar deitado na rede com ele, nos para-sempres-do-eterno. Mainha Janaína ficou desesperada com o sumiço do filho, e pediu a Jorge que fosse atrás dele, que o trouxesse de volta para casa, que ele abandonasse os braços do bruxo. Jorge foi, falou, voltou, e Tião não quis ir com ele, não. O mano-dos-ferros disse ao mano-das-matas: você bebeu foi poção de bruxo, está enfeitiçado, está macumbado, está amalucado, está no sem-razão, e o outro respondeu: se isso for feitiço, o desejo que sinto, eu quero que dure para sempre, agora você saia, você vá embora, você diga a nossa mãe que ficarei aqui, nos fundos do mato, no jamais-do-para-sempre, que ela não chore, que ela não se apavore, que ela aceite isso que faço, minha escolha, meu fado, magia que não desfaço.
Isso foi o que sucedeu, do modo que ocorreu, e o diabo me coma o cu, se estiver mentindo. Jorge voltou ao Sítio Alaketu e contou à mainha a decisão do insensato, de amigar-se com o caboclo-das-folhas, aquele que tem três pernas, que são uma só perna, que são duas pernas, uma mais curta do que a outra. Mainha Janaína não chorou; a mãe é como o mar, tem imensidão dentro dela, guardou a mágoa e foi cuidar das lides da casa e ajudar a preta perneta com os preparos do almoço: cortar a cebola, misturar com o leite de coco, o amendoim, o caldo de camarão e as castanhas de caju, para fazer o caruru, depois fazer o dibô, canjica branca cozida em leite de coco, com mel e uvas brancas por cima, ou então a canjica refogada com azeite de dendê, cebola e camarão seco. Cozinha de Janaína era famosa na cidade, ninguém fazia quitutes igual a ela, o senhor precisa provar a moqueca de siri que ela prepara com suas mãos habilidosas. Quando não cozinhava, ficava sentada costurando roupas para a quermesse da igreja, ou bordava toalhas, panos de prato, lençóis, colchas de cama, fronhas de travesseiro, e sempre cantava baixinho, enquanto seus dedos deslizavam pelo tecido: Iyá mi ni njé eran etú / Iya mi na ni njé era pepeyé, esse era o canto marinho dela.
Janaína era mulher simples, como as ondas do mar, incapaz de ficar quieta, só sabia estar em movimento, como as ondas do mar, mulher marinha, mulher-toda-mar. Sozinha, administrava o sítio, fazia contas e pagamentos, comprava sementes e adubos, e Jorge ajudava a mãe no que podia: cuidava das ferramentas, afiava foices e facões, labutava na lavoura, estava sempre perto, como um remador da canoa da rainha do mar. E assim se passaram os dias e as semanas no Sítio Alaketu, na casa azul-turquesa, casa cada vez mais pesada, escura, silenciosa, como o fundo do mar; mainha dos manos foi ficando mudada, cada vez mais triste, com saudades do mano-das-matas. Jorge voltava do roçado e via Janaína distante e muda, metida com as suas costuras, os seus retratos de família, o seu canto escuro de sereia. O mano-dos-ferros resolveu então ir ao lá-longe, em busca do mano-das-matas; que ele deixasse os braços do bruxo, pensasse na mãe e voltasse para ela, para os braços dela, para o os olhos dela, para as águas-de-água dela. Jorge jogou a mochila nas costas e botou o pé na estrada, seguiu trilhas até os fins do fim do mundo, no mar verde das matas, e então encontrou o mano fugido, socando pilão na cabana do caboclo-das-folhas. Mano-dos-ferros falou com ele certas palavras, palavrinhas, palavrões, os dois discutiram, se olharam como dois touros bravos e quase saíram aos socos, mas no final do sururu-desavença eles se abraçaram e voltaram juntos para casa, os dois manos. Tiãozinho disse ao amor-amado que não se amuasse, ele iria apenas visitar a mãe-cujos-filhos-são-peixes, pediu que o aguardasse, em seu fui-indo-e-já-voltei, na paz dos caminhos.
De volta pelo mato, os dois mal se falaram; um andava mudo, o outro seguia calado, até chegarem no sítio. Jorge correu para a casa pintada de azul-turquesa, para chamar a mãe. Ela largou a faca e as cebolas no mármore da pia e foi ver o que filho-dos-ferros queria. Jorge pegou a mãe pela mão e levou-a até a entrada do sítio, onde ficara Tiãozinho, fumando um cigarro de palha. Quando a mulher viu o filho caçula, não disse nada, nem moveu um músculo da face, ficou imóvel, só vendo o moleque negro-verde-vermelho. Janaína, o senhor saiba, é mulher orgulhosa e não perdoou a falha do filho: não lhe disse nada, depois apontou com o dedo para a estrada de terra batida e disse apenas: vá. Ela botou Tiãozinho para fora, que ele não voltasse, que fosse embora de vez, esse infeliz, que ficasse com o seu marido, o seu macho, o seu amásio, e não envergonhasse mais a família. Janaína é amorosa, o senhor saiba, é mãe que cuida das crias, mas, se for contrariada, é mar revolto, em noites de tempestade. Tiãozinho, então, deu as costas, tristonho, e foi embora. Voltou à cabana do caboclo-das-folhas, e vive até hoje com ele, feliz. Aqui acaba essa parte da história, não há mais o que contar do mano-das-matas, ele-que-foi-indo e nunca mais voltou. Jorge, o mano-dos-ferros ficou magoado com tudo e alguns dias depois saiu de casa também, de volta a Salvador e à oficina, para cuidar de seus negócios. Mainha Janaína só então ficou desesperada, sem os filhos que amava, chorou, chorou e chorou, até que num dia que era noite ela se transformou em rio. É o que diz a Tia Maria Menina, que nunca mente.