Um trecho de romance de Fernando Ferrone
Fernando Ferrone nasceu em Jardinópolis, São Paulo, em 1981. Sociólogo e cientista político pela Unicamp, defendeu mestrado em História Contemporânea na Université de Borgogne, em Dijon, França. Trabalhou como editor e tradutor. Atualmente, coordena clubes de leitura e escrita. Tem contos publicados em revistas digitais e, em 2017, publicou seu romance de estreia, à deriva. Em 2021, lança um novo romance, A Longa Noite de Bê, pela Mocho Edições, já em pré-venda.
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O trecho abaixo é parte integrante do romance A Longa Noite de Bê.
***
1.
Taí um negócio que a gente nunca acha que vai acontecer com a gente: sequestro.
É o tipo de coisa que o pessoal acha que só acontece com grã-fino, com magnata.
Ou com filho deles.
Filha.
Mulher.
Sabia que é mais comum do que parece? Pois é. Só não aparece muito na televisão. Já pensei bastante a respeito. No começo, eu achava que era tabu. Tá ligado que existe isso, né? Televisão, jornal, site, nada disso fala de suicídio. E existe, hein? Dizem que se falar vai incentivar. Poderiam tentar com outras coisas. Pense não falar mais de corrupção. E a roubalheira acaba!
Pense.
Acho muito legal isso de não falar sobre algo e esse algo não existir. Há toda uma corrente filosófica que acha que é isso mesmo. Quer dizer, acha o contrário: se falar é que existe. Que a palavra tem poder criador. Tá na cara que não funciona, mas o povo segue nisso. É um tipo de orgulho, né?
– …
Desculpe… não entendi.
Hum… não vai rolar de você tentar falar com esse negócio na boca.
Amarrado assim, amordaçado assim, até que você não é de todo mal.
Vou deixar você mais um pouco.
Homem tem dessas de ficar interrompendo a gente. Incomoda. Vou curtir seu momento submisso mais um pouco.
Então…
Ah, sim: sequestro. E cárcere privado, né? Não sou especialista em nenhum dos dois, mas faz parte dos meus interesses, sabia? Nossa… que bobagem a minha. Claro que você não sabe. Nem que você colocasse essa cabecinha esquisita sua pra funcionar a mil você seria capaz de saber.
Tudo bem.
Tudo a seu tempo.
Sequestro é sequestro, cárcere privado é cárcere privado. Mas eu gosto mesmo é de chamar de condução coercitiva. Perdeu totalmente a graça depois que a PF e a juizada midiática gastaram o termo no noticiário. Antes o Partido era uma das poucas organizações neste país que faziam condução coercitiva. Agora tá tipo over.
Hoje, pra um reles depoimento já tem toda uma equipe às seis da manhã na casa do depoente.
Pra quê?
Celebridade não liga de ir prestar depoimento na delegacia, não.
Tem todo um charme.
Já a gente quer morrer. Maior escarcéu pro delegado aparecer no noticiário da hora do almoço. Acorda cedo. Colete menor que a silhueta. Os novinhos querendo aparecer mais que os antigões. Cara amassada. Falta café. Tenso, viu?
Melhor coisa: trabalhar sozinha. No máximo, com aquele frila fixo de respeito.
Te falo por conhecimento próprio.
Se você se livrar dessa, procura trabalhar sozinho. Te vira. Seja teu chefe, como dizem.
Por falar nisso…
Bê, quero te assustar não. Mas você tá bem enrascado, querido.
Não fosse o que eu sei de ti, só o fato de terem me chamado já quer dizer algo.
É porque você não deve se lembrar de mim. Depois de tanto tempo, eu não duvidaria que você se esqueceu completamente. Mas eu sou tipo uma profissional de elite.
Quando alguém diz de uma mulher que é “profissional”, soa “puta”, né?
Pode concordar com a cabeça, eu tô te vendo. Faz assim, vamos combinar um código. Quando você quiser dizer sim, você balança a cabeça de cima para baixo. Quando você quiser dizer não, você balança de um lado pro outro.
Você é capaz de lembrar?
Ai, ai.
Desculpa rir de você. É tão bom. Durante tanto tempo eu fui séria.
Focada.
Compenetrada.
Eu achava que mulher tinha que se dar ao respeito.
Bom, eu ainda acho. É que na época eu achava que se dar ao respeito era ficar quietinha, calada, amuada num canto. Só respondendo sim ou não com a cabeça.
Tipo isso que você tá fazendo agora.
Não seja tímido, Bê. Pode falar com a titia. Prometo que serei boazinha com você.
Agora, quando você chegar na diretoria, pode ser que a coisa seja um pouco diferente.
Você é um menino bem travesso, Bê.
Vai ficar de castigo um tempinho.
Ou vai ganhar uma expulsão.
Ou coisa pior.
Prepara bem teu xaveco, bonitão.
Mas, por ora, a gente vai fazer diferente. A gente tem tempo.
O prazo que me deram pra te entregar pro diretor ainda não esgotou.
Se eu te entregar assim tão cedo, capaz de ele sacar que não foi muito difícil. Daí, da próxima vez que eu quiser um bônus por “dificuldade de apreensão”, pode ser que não role.
Livre negociação, né?
Mas eu estaria mentindo se parasse aí. Como a gente tem tempo, vou contar mais pra ti. É porque você ainda não se lembra, mas você ficaria chocado como a vida modifica a gente.
“Modificar” talvez não seja a maneira mais correta de falar.
“Revelar”.
Revelar é uma maneira bem bonita de colocar a coisa. Porque tá tudo lá, meio escondido, daí vem algo e PÁ!
Ô, Bê, te assustei? Desculpa, viu.
Olha, me faz um favor.
Falando bem sério.
Não se borra.
Eu já troquei fralda de bebê. Ainda troco, pra ser exata. Mas é a minha bebê, e eu gosto dela. Quando você gosta, até cheiro de cocô é bom.
Quando você não gosta, Bê, até bom-dia soa ofensivo.
Por isso que eu não quero ouvir a merda da sua voz, seu bosta.
Mas, como você ainda é um bebezão, eu vou contar essa historinha pra ti.
Pode ser a última coisa que você ouça antes de dormir um soninho bem gostoso, sem sonhos.
Ela vai se chamar As Aventuras do Bom Otário Bê. E, como a outra história lá que tem um título parecido, ela ainda tá inconclusa.
E eu não sei como a tua vai terminar.
Mas eu tava falando de se revelar, né?
Acho que é isso mesmo. Você lembra do House, Dr. House? Passava quando a gente estava na faculdade. Na época em que tevê a cabo ainda valia a pena ter. Ele adorava dizer isso:
People don’t change.
“Don’t change” mesmo. Não fucking muda. Você vê um bebezinho e já saca como ele vai ser?
Nossa…
Minha bebê sempre foi calma. Desde a primeira vez que vi seu rostinho, ela me transmitiu esse sentimento. Mais do que eu a acalmar, ela que me fazia bem, que me acolhia. Maria Cúria dorme bem à noite, não faz birra pra comer. Por isso que até hoje, quando alguém me pergunta se eu sinto falta do pai dela, eu digo que não. Que quem nunca se fez presente, nunca vai fazer falta… Enfim, não vem ao caso.
Mas é isso mesmo: ninguém muda, não. No máximo, se revela.
Embaixo de um monte de repressão, soterrado por camadas e camadas de entulho psíquico – pra nem dizer de medo de ser pego, exposto, aprisionado, violado –, existe o teu verdadeiro eu.
Self que diz, né?
Essa semente que só espera uma brecha, uma fenda, um caminho nesse amontoado de merda que jogam pra cima da gente desde que a gente nasce.
Basta uma pequena oportunidade pra brotar. Pra nascer. Pra se revelar.
Eu nasci, Bê.
Já você, eu não poderia dizer o mesmo.
Pra mim, você ainda é o mesmo fracasso que eu conheci há anos.
Essa pessoa que nem conversar sabe. Que parece uma ostra.
Não tem como esquecer.
Tenho meu calendário pessoal pra me lembrar de quando te conheci.
Olha pra você: impotente, sujo, começando a feder, com fome, frio, tremendo.
Se você não sabe, esse é exatamente quem você sempre foi.
Você só se revelou.
Porque a gente acha que se revelar é mostrar o que a gente tem de bom, né?
Todo idiota que se chama de coach hoje em dia diz isso de uma maneira ou de outra. Ninguém chega para você e joga a real: que você não passa de um verme asqueroso e tudo o que você pode fazer de bom pro mundo é mostrar o verme asqueroso que você realmente é.
E, com isso, dar a oportunidade de alguém acabar com a sua existência mesquinha pisando em você.
Agora, será que valeria a pena você ser esmagado sem saber por que você foi esmagado?
Olha…
Valeria.
Porque uma súbita epifania nessa altura da vida dificilmente te faria alguém melhor. People don’t change, lembra?
Mas a real é que eu tenho coração mole e um princípio moral.
Um e apenas um.
Se eu prometi uma coisa, eu vou fazer essa coisa.
O combinado é sagrado.
Nada mais é sagrado nesta vida que a palavra empenhada.
É hombridade que chama, né?
Ser homem.
E aí, como é ouvir isso de uma mulher? Como é saber o que é ser homem de alguém que nem homem é? De alguém que é mais homem que o homem que você jamais será, seu saco de cromossomos estragados.
Pois é. Eu combinei que faria você ouvir uma última vez todas as merdas que você fez na vida.
Sabe quando dizem que, quando você está prestes a morrer, toda a sua vida passa como um filme diante dos seus olhos?
Você sabia que isso é uma das lorotas que Hollywood criou pra gente e que a gente toma como verdade? Porque, bem, quem contou histórias pra gente não foi um sábio ancião em volta de uma fogueira. Foi Hollywood:
Disney quando a gente é criança.
Warner quando a gente é adolescente.
Paramount quando é adulto.
MGM quando é velho.
Um monte de histórias pra gente se confortar. Pra esquecer da merda de vida que a gente tem.
E, em algum momento, algum roteirista achou que seria legal que no nosso leito de morte tivesse um resumão da nossa vida.
Encontrou um produtor que acreditou na ideia.
Um diretor que não ligava pra isso porque só pensava em como manteria aquele astro sóbrio pra mais um dia de filmagens.
Um editor que não teve outra alternativa a não ser aquela tomada brega.
E o roteirista ficou colocando isso em outros filmes.
Outros colegas roteiristas pegaram isso e colocaram nos próprios roteiros.
A coisa se tornou uma lenda urbana!
Só que não. Não acontece.
Esse prazer de rever pela última vez os momentos marcantes da nossa vida antes de não ter mais vida não existe.
A morte é uma coisa feia, triste, suja e, sobretudo, fedida.
Você se mija e se caga quando tá morrendo. Você vira uma enorme bola de peido quando apodrece. E um caldo nojento quando ainda não desapareceu pra sempre.
Não tem nada de poético na morte ou na agonia.
Mas eu tenho esse princípio. Eu prometi que faria o melhor pra você ter a sua própria sessão privativa de cinema antes da sua morte certa, Bê.
Aproveita.
Vou dar o meu melhor.