Um trecho de romance de Fernando Ferrone
Fernando Ferrone, nascido em 1981, mora em São Paulo, SP. É romancista e contista. à deriva (2017) é seu livro de estreia. Fanpage: facebook.com/escritorfernandoferrone
***
Trecho do romance à deriva, de Fernando Ferrone, edição independente, 2017
há um ponto para lá da arrebentação das ondas, rumo ao fundo, em que é possível flutuar na água salgada do mar. mas não só se fazer suspender à flor d’água. nesse ponto, cuja distância varia de praia para praia, é possível se espraiar o corpo, estender e depois relaxar os músculos dos braços e das pernas, deixar o abdômen flácido. inspirar e expirar profunda e lentamente. de início, fitar o azul do céu e, depois, o vermelho das pálpebras. mas a melhor parte, acreditava Isabela, era sentir os canais auditivos selados pela água salgada. essa era a flutuação de verdade. flutuar era sentir-se inteiramente suspensa, o corpo e a mente. o corpo suspenso na água e a mente, no silêncio. se algum dia meditasse, Isabela teria certeza de que seria uma sensação assim. quando descobriu pela primeira vez a sensação, ainda adolescente, chegou a cochilar e navegou sem rumo, à deriva, por um tempo indeterminado. uma súbita correnteza fria a despertou e de pronto foi tomada pela sensação aterrorizadora de estar perdida. endireitou-se e procurou pelo guarda-sol dos pais na praia. a poluição de cores a impediu de achá-lo de imediato. decidiu nadar até a areia e, vencida a arrebentação, passou a buscar por algum ponto de referência, mas não se lembrava de nenhum. errou por vários minutos e parecia que nunca tinha estado no local antes. já não tinha idade para chorar e esperar que algum adulto se apiedasse e a ajudasse. daí que sentiu o coração subir à garganta, e a vista embaçar. uma vertigem inédita se somou ao cansaço dos esforços na água e na areia fofa, e ela sentiu as pernas cederem e os joelhos se enterrarem na areia.
estava a ponto de chorar, quando avistou seu irmão passando a apenas dois metros de si, chupando um picolé. acompanhou-o com o olhar alguns instantes, meio incrédula, e a não mais que vinte passos estavam seus pais. o pai sob o guarda-sol sentado numa cadeira dobrável e Neide deitada de bruços sobre a esteira de palha ao seu lado. recompôs-se, levantou-se, retirou a areia dos joelhos, vestiu a cara mais calma que pôde encontrar e seguiu para junto deles. saudou-os com uma pergunta qualquer sobre os sanduíches que haveria para o almoço e deixou-se cair na cadeira dobrável deixada vazia pela mãe. nos minutos que se seguiram, ruminou várias hipóteses sobre o que poderia ter acontecido caso não tivesse sido encontrada pela imagem do irmão deixando o carrinho do sorveteiro. como faria da próxima vez que se perdesse novamente? ou melhor, que poderia fazer para não se perder novamente? lembraria de gravar na memória pontos notáveis. lembraria de decorar em todos os detalhes o padrão de cores do guarda-sol da família e dos vizinhos de areia. lembraria de gravar o contorno dos prédios da orla. todas as coordenadas práticas para nunca mais ser tomada de desespero ao sair do mar. mas um segundo sequer cogitou a possibilidade de ter sido tragada pela correnteza para o alto mar enquanto cochilava.
assim que, sob o sol de Trindade, numa praia quase vazia, longe dos banhistas que se aventuravam na arrebentação, deixou-se derivar longos minutos alheia ao mundo ao redor. ao despertar, mergulhou para aliviar o ardor da face e, ato contínuo, nadou rumo à faixa de areia. na primeira oportunidade, pegou um jacaré e, em pouco tempo, estava novamente com os pés enfiados na areia amarela, sua pele deixando escorrer o resto de água do mar atrás de seus passos.
caminhava olhando para o chão. não havia muitos guarda-sóis espalhados e instintivamente sabia onde encontraria o seu. assim que só quando chegou muito próximo notou um intruso.
oi.
Caetano! tudo bem?
tudo.
o rapaz estava vestido com a mesma bata marrom, a fenda da gola rasgando o tecido até o meio do peito, mas mantida fechada por tiras mal amarradas. a mesma calça de algodão bege manchada. sentava-se sobre os calcanhares, as mãos repousadas sobre os joelhos. a única diferença das outras vezes é que tinha os dreads presos por uma fita branca. Isabela pensou que talvez fosse seu modo de trajar social. ou menos casual.
estou atrasada?
não, de jeito nenhum. eu que não tinha muito o que fazer e achei que pudesse chegar mais cedo.
sorriu ao terminar a explicação, mas Isabela achou que havia algo em seu olhar ou mesmo no tom de voz que denunciasse sua apreensão. depois de uma longa busca, finalmente confrontar a mulher que talvez tivesse a informação definitiva sobre o paradeiro da mãe… aquela sensação angustiante de uma jornada que poderia enfim ser concluída, mas que, talvez, se mostrasse frustrada.
Isabela retomou o fôlego, inclinou a cabeça de lado, torceu os cabelos escorrendo a água salgada do mar e pediu a Caetano a toalha. enxugou somente o rosto e a devolveu. o rapaz colocou a toalha de lado e ficou olhando para algum ponto no oceano, como se pensasse muito ou quase nada. Isabela não sabia muito o que dizer, mas o silêncio implorava por ser quebrado.
olha, eu acho que tudo vai dar certo, sabia?
eu também.
LÍVIA
RECOMENDO MUITO A LEITURA DE À DERIVA. LI EM UMA DEITADINHA NO SOFÁ, DE UMA TARDE DE UM SÁBADO ENSOLARADO. FLUIU MUITO!