Um trecho de romance de Fernando Gil Paiva Martins
Fernando Gil Paiva Martins é escritor, mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e professor de idiomas, além de ser um grande admirador e apreciador da sétima arte. Publicou seu primeiro romance, Sonora (2010), por meio independente. Em 2017, com a obra As In.ter.mi.tên.ci.as da Á.gua, foi um dos ganhadores do 2º Prêmio Mato Grosso de Literatura na categoria prosa. Esse livro retrata o desafio de reparar erros em um cenário em que a água ou a falta dela é apenas um condutor para várias outras crises, e abaixo temos um fragmento de sua narrativa.
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Prognóstico
Antes que caíssem as primeiras gotas de chuva da temporada, o céu azul e praticamente sem nuvens havia resistido firmemente por dias. O sol esquentava os telhados e os chãos e alpendres das casas, os objetos, as pessoas e tudo mais que ele tocasse. E por um motivo que nem mesmo a estrela deste sistema ou os meteorologistas pudessem conhecer, uma fina e espessa massa negra e cinza foi se acumulando cada vez mais no firmamento, sobre a Cidade Sul, até que não houvesse espaço para que a luz pudesse esquentar e queimar.
A raridade do evento climatológico acumulou nuvens pesadas de uma chuva que não era esperada, de uma água a ser depositada por uma origem incerta. Desde a primeira gota que caiu, no céu ficou aquela marca, negra e triste, que traria tantas incertezas, medos e mais tristezas. Nos primeiros dias, era chamada de estranha nuvem de chuva. Depois passaram a chamá-la de outro nome.
No primeiro dia e também na primeira noite, a chuva começou a cair tímida, mas ganhou intimidade e, tão íntima, ficou: desde a hora em que o sol nasceu até quando ele se pôs por trás da nuvem de chuva, era possível ver a água despejando nos telhados, ruas, jardins, guarda-chuvas e nas cabeças das crianças que brincavam nas ruas.
No segundo dia, a água que estava lá em cima, no firmamento, continuava a cair, e ia fazendo, aqui em baixo, volumes de água como os primeiros oceanos: desde a hora em que o sol nasceu sem ser visto até algum momento em que ele se pôs, era possível ver a água despejando nos telhados enfraquecidos, jardins enlameados, guarda-chuvas e nas cabeças das crianças que as punham para fora de casa para ver se a chuva já tinha passado.
No terceiro dia, muitas árvores, que jaziam fortes nas calçadas, praças e nos quintais das casas, perdiam o seu vigor e também os seus frutos. Algumas cediam ao cansaço, afogavam-se ou eram arrancadas com a truculência da água que já tinha corrente, forte como um rio selvagem. Logo, o que antes era alimento também se perdia – das árvores às hortas de fundo de quintal e também nos arredores da cidade. Do início ao fim deste dia, era possível ver a água despejando nas casas destelhadas, no que fora praça ou jardim um dia, não mais nos guarda-chuvas – pois já não havia gente que ousasse sair de casa – e nas cabeças das crianças que tentavam dormir empoleiradas nas camas empapadas pelas goteiras.
No quarto dia, os relógios marcavam oito, depois nove, depois dez da manhã, mas o tempo fora das casas não parecia muito diferente do que diziam as horas. O céu estava completamente lacrado, não havia indícios de que as nuvens perderiam força e a chuva seria passageira. Também pela noite muitos estavam se acostumando a nem ver mais as estrelas e nem sabiam qual a fase da lua. A todo o momento, era possível ver a água despejando certeira e decisiva sobre muitos lares já desabitados pela total perda; nos asfaltos, mais resistentes que praças e jardins, mas que também começavam a puir como tecido velho rasgando; e nas cabeças das crianças que eram carregadas por alguns pais em canoas nos bairros mais atingidos pelas enchentes.
No quinto dia, até mesmo as árvores que ainda resistiam pareciam estar sufocadas com tanta água que (por céus!) não parava de cair. As folhas se despediam assim como as aves que, muitas com poleiros improvisados, procuravam copas alheias para aparar-se. Bandos inteiros cortavam o céu escuro lançando um ruído, um quase uivo canino, e quem se detinha aos detalhes podia ver que essas aves, dotadas de um detector de tragédias, voavam sob seus mais instintivos sentidos. Assim também faziam vários cardumes que, percebendo o aumento repentino de seu hábitat, norteavam outras direções vendo que aquela não resultaria em coisas boas dali para frente. Assim fizeram enxames e nuvens de insetos que atravessavam o ar úmido e lutavam contra a água que cortava verticalmente o ar de seu devir. Insistentemente, era possível ver a água despejando e pessoas em pânico tentavam fugir em mais e mais canoas; outras se encontravam ilhadas nos tetos cobertos com lonas improvisadas e se supriam de um sustento divino que se transformava em fé abalável.
No sexto dia, a cena mais curiosa chamou os olhares da menina que estava parada na janela de seu prédio no segundo andar: um grupo de cães, seis ou sete, desceu correnteza abaixo. Eles se debatiam com força contra a água voraz e, num fino pio, derramavam o pranto do medo e do apuro das incontidas águas. A menina queria ter descido para ajudar, mas ninguém naquele prédio ou em nenhuma outra casa da Cidade Sul tinha condições de deixar seus lares para fazer o que quisessem. Exceto em uma casa, grande e antiga, não nas redondezas, nem na periferia, mas numa fazenda no interior do estado que também era castigado pelo mau tempo. Nesta noite tenebrosa, um senhor de idade avançada saiu da proteção de sua casa para tentar salvar seus dois últimos cavalos que estavam em um estábulo prestes a ruir. O homem saiu e atrás veio sua esposa tentando impedi-lo na remoção de algumas vigas de madeira e muita palha e feno, misturados ao sangue de um dos cavalos que não havia sobrevivido. Segundos depois, dois raios caíram naquela fazenda. O primeiro deles derrubou uma enorme árvore por cima da frágil estrutura ainda resistente do estábulo. O segundo caiu atrás da casa, em um campo aberto entre a residência e o estábulo. Foi por causa dessas e outras que no sexto dia outra cena começaria a se repetir dali até o dia seguinte. Um casal de idade, muito próximo e familiar à sua crença, rogou aos céus e aos deuses mais poderosos de todo o universo para que arrancassem de sua cidade aquele líquido amaldiçoado e maldito que tinha feito tudo que era tragédia. E o episódio simplesmente começou a se repetir. Desde a hora em que o sol parara de nascer aos olhos do povo até a hora em que não se via mais seu pôr, era possível ver a água despejando e os casais se multiplicando e rogando e querendo tudo, menos água. Tudo, menos água. Tudo, menos água. Já não havia mais lugar onde a água não tivesse caído.
No sétimo dia, em que as palavras parecem gastas pela repetição do líquido infame, o dia ou noite, não se sabe mais a diferença, recebeu o último pedido da terra. E respondeu em seguida.