Um trecho de romance de João Victor Barbosa
João Victor Barbosa nasceu no interior do estado de São Paulo, em 1993. Formou-se em Letras e é professor de redação, inglês e francês. Escreve prosa de ficção e já publicou alguns romances por conta própria.
Abaixo, trecho do romance Coxas de veludo, ainda não publicado.
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Coxas de veludo
A memória é o único patrimônio íntimo que nos carrega no colo até a morte. Sempre é um grito, uma súplica, um punhal de minúcias, uma coisa fértil desenhada em raridade que se funde cada vez mais à carne, transformando tudo nesse grossudo instante que nunca termina. E sobreviver para contar a história. Sobreviver à memória. Como? me perguntariam. Eu vou tateando dentro da noite essa coisa, procurando gestos e línguas, assim como demônios incompreendidos procuram as entradas da vida, esperando alcançar os calcanhares da salvação. Como se o mundo tivesse nascido das veias de um anjo decapitado. E assim existido o todo, as formas e seus enlevos. Mas o mundo nasceu sem as pernas e andou pela primeira vez com suas tripas penduradas do lado de fora. Na medida em que caminho ouço o uivo dos mortos, como se o mesmo aquele anjo decapitado possível criador do todo estivesse à sombra de toda parte. As ruas, o Largo do Arouche, as poucas putas que ainda sobraram nas esquinas. Algumas barrigas adolescentes se buscam, transitam pelas esquinas, choram nos bares e gozam na sombra. E estou aqui, tenho pernas compridas para um adolescente e um sexo que urde em silêncio, uma boca e um par de olhos que se sustentam mesmo no escuro à procura dos rapazes que se espalham ao longo do Largo do Arouche. Chego na Praça da República, sinto o cheiro do sangue e posso ver a fumaça de mais alguns cigarros se sobressaindo em meio às folhagens que cobriram as ruínas do coreto. Um rapaz sai da sombra e joga fora o cigarro que até então fumava, vem em minha direção, anda lentamente, como se seus passos fossem coisas proibidas de serem consumidas. Ele cambaleia, faz-se acuado sem se fazer perceber, como uma criança noturna que repousa sua cabeça nas coxas da primeira noite do mundo. Ele chega até mim, coloca as mãos nos bolsos da calça, sorri, o bigode incipiente lhe traz a mansidão dos animais sem casa, e eu o abraço, afago antes com as costas da mão sua nuca acobertada pelos cachos negros de seu cabelo. Penso em voltar atrás e fugir na noite. Ele é só um rapaz, me digo, olhe esses olhos, essa pele à espera de que os anos lhe desenhem rugas, lhe ponham cicatrizes mais fundas que o desespero do primeiro amor. Aquele cabelo esvoaça e eu recebo seu cheiro, nácar, sombra, incipiência, juventude. Nossos corpos se aproximam mesmo assim, nossas peles compartilham nosso suor, nossas bocas tremulam como a lua tremula numa poça d’água criada de uma chuva antiga. O rapaz se entrega ao meu abraço como um crepúsculo inventado, um beijo de um desconhecido, e no instante seguinte meus dentes afiados estão cravados em seu pescoço juvenil, bebendo de seu sangue ainda ralo. Num último suspiro, com o peso do corpo sustentado pelos meus braços, o rapaz cola a bochecha no meu ouvido, mas sua boca borbulhante apenas me entrega um último silêncio de uma vida em memórias que agora são minhas. Nos arrabaldes a escuridão e as ruínas. Deixo o corpo descansando dentro das folhagens e sigo pela Ipiranga deserta. Estou atordoado. O sangue que bebi há pouco deixa em mim a nítida, porém falsa impressão de que meu corpo retorna à quentura de quando, cem anos atrás, minha mãe me levava ao colo para me entregar seu seio. Mas não há nada que seja quente, ou mesmo morno. São apenas as memórias do jovem de quem há pouco bebi o sangue, elas todas, vivas, pulsantes, correndo por mim como se fossem minhas, como se tivesse eu mesmo vivido a ternura da carne; memórias partidas se perturbando em mim, assim como todas aquelas de todos os que tiveram a carne perfurada pelos meus dentes. E enfim me perco em ruas que não sei mais o nome, lugares que têm outras caras depois desse tempo todo. São Paulo pode ser muito solitária, e a solidão transfigura o tempo e sua matéria. E eu, o que devo fazer com a eternidade deitada no meu colo? Os muros invadem a cabeça, e no breu da liberdade eu sou a memória dos meus fantasmas. Estilhaços dessas presenças ainda estão fincados na minha carne. Mas continuo andando na noite, vou ao Ibirapuera, onde as sombras dançam feito soluços. Busco os homens que fazem sexo nos bananais. Mas são outras coisas que encontro. O que vejo tem essa nova forma, esse novo gosto. Um rosto de penumbra se cria na minha mente. E uma voz escapa das gavetas da memória. Você acredita em vampiros? Acredito no sangue. Na carne também. Mas na memória não é minha carne, não são meus ossos que estalam, não é a minha voz que ecoa nos túneis das lembranças. De repente, sem nunca ter visto aquele rosto em minha vida, percebo amá-lo como se nossas carnes estivessem unidas num mesmo sangue, um sangue que agora percorre em mim espalhando a luxúria do gozo, as memórias de um defunto apaixonado. Por que todo grande amor se faz em forma de morte?
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