Um trecho de romance de José Falero
José Falero é escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019).
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“Maus bocados”, capítulo 3 do romance Os anjos não choram (nome provisório)
A fome não é tão ruim assim. Ao contrário: a ligeira sensação de vazio nas entranhas serve como um lembrete até animador de que logo, logo haverá o prazer de comer alguma coisa bem gostosa! Não é verdade? Ruim, ruim mesmo, é não ter perspectiva de saciar a fome: isto, sim, é terrível! A cada hora que passa sem que a boca mastigue, mais e mais se revolta o estômago, que a princípio apenas reclama ruidosamente, mas depois começa a espalhar pelo corpo inteiro uma alarmante sensação de fraqueza, ameaçando interromper para sempre o fornecimento de energia. A pessoa logo se torna incapaz de pensar em qualquer coisa que não seja dar um jeito de arranjar comida; entretanto, por mais fortemente que mentalize os alimentos, nunca é o suficiente para materializá-los. Não há forma de obtê-los. Simplesmente não há forma de obtê-los, e embora isso seja claro, a situação por vezes parece um contrassenso tão grande, do ponto de vista do próprio esfomeado, que ele chega a duvidar da realidade, acreditando, nesses fugazes instantes de delírio, que forçosamente deve haver algo de comer a seu alcance. Porém não há. É inútil olhar ao redor, é inútil vasculhar os bolsos: não há. Não há o que comer agora, nem haverá o que comer depois, e algo precisa ser feito urgentemente quanto a isso, mas também não há o que fazer, e assim tudo vai se tornando desespero.
Pois era desse jeito que estava o pequeno Carlitos: desesperado de fome. Sem comer nada havia dois dias, o menino de apenas onze anos tinha sido enxotado a pontapés daquele restaurante de beira de estrada onde fora implorar por comida, e a busca na lata de lixo também acabara sendo infrutífera. Só lhe restara sentar debaixo daquela árvore próxima ao estacionamento, abraçar os joelhos e esperar: as pessoas que estavam tomando café da manhã no estabelecimento, e que viram-no ser expulso sem dó pelos funcionários, talvez se compadecessem e lhe dessem alguma coisa ao sair. Mas essa última esperança não demorou a se dissipar, porque os clientes saíam do restaurante, entravam em seus carros e seguiam viagem pela rodovia, sem nem mesmo dar uma pequena olhada na direção dele.
Desatou a chorar.
O ranho que começou a lhe escorrer copiosamente pelo nariz fê-lo lembrar do irmão mais velho, em quem não botava os olhos havia uns dois anos. “Chorar só faz ranho, Carlitos!”, costumava lhe dizer Gonzalez, sempre que o achava aos prantos. “Sabe o que isso significa, criança estúpida? Hein? Significa que chorar não vai resolver os seus problemas! El que quiera peces que se moje el culo! Então pára de chorar agora mesmo! Pára de chorar, levanta a cabeça e faz o que tiver que fazer pra ficar bem! As coisas nunca caem do céu, e não importa o quanto você chora! Entendeu? Seu bostinha!” Normalmente o irmão terminava a reprimenda abraçando-o com força e bagunçando-lhe o cabelo.
A recordação atiçou os brios de Carlitos. Como se efetivamente tornasse a escutar, naquele momento, o tão conhecido sermão, parou de chorar na mesma hora e puxou a gola da camisa para enxugar olhos e narinas. Em seguida, ergueu a cabeça e olhou ao redor, determinado. Se preciso fosse, estava até disposto a ir de novo ao restaurante, catar a primeira coisa de comer que visse pela frente e sair correndo, apesar de saber que, caso conseguissem apanhá-lo, o castigo seria cruel. Mas essa ideia de voltar ao estabelecimento logo foi varrida de seu espírito, porque, de repente, mal podendo acreditar, deu com os olhos numa plantação do que, à distância, lhe pareciam ser laranjas. Os incontáveis pés despontavam na crista duma colina, a qual erguia-se sobranceira por trás do matagal, do outro lado da estrada.
No caminho para atravessar a mata e chegar à elevação, Carlitos caiu numa armadilha da natureza. Em vez de contornar um numeroso grupo de rochas limosas que surgiu-lhe à frente, inventou de atalhar por cima delas, subindo primeiro nas menores e depois avançando para as mais altas, segurando-se nos cipós ao redor, cuidando para não tomar um tombo; por fim, deixou-se resvalar gostosamente na superfície oblíqua da última rocha, como quem desce por um escorregador, e assim, atingindo o solo com velocidade, enfiou quase metade das pernas para dentro dele: havia naquele ponto um tremendo lamaçal, traiçoeiramente oculto debaixo do folhedo caído das árvores.
— Me cago en la leche!
Nessa desdita, perdeu para sempre os chinelos e, depois de enorme esforço para sair do atoleiro, teve que seguir descalço, ferindo a sola dos pés em espinhos e gravetos. Não obstante, pensou consigo mesmo que a pequena aventura valeu a pena: após cruzar o matagal e galgar o declive, ali estava ele, estirado na relva, balançando contente os pés enlameados, namorando a imensidão azul do céu, sentindo no rosto o calor do sol matinal e, o melhor de tudo, saboreando as suculentas bergamotas (pois eram bergamotas, e não laranjas).
Em determinado momento, quando se pôs de joelhos para colher mais algumas das frutas, entreviu por acaso, através da folhagem da bergamoteira, um par de botas velhas que estavam do outro lado, quase invisíveis no meio do capim. A princípio concluiu que deviam ter sido abandonadas ali por alguém, e até planejou ir verificar se lhe serviam; mas em seguida percebeu que os calçados, na verdade, estavam em uso naquele preciso instante, pois movimentaram-se num passinho sorrateiro — um passinho de quem tenta se aproximar desapercebidamente. Alarmado, abaixou-se um pouco e esticou o pescoço para lá e para cá, tentando enxergar melhor por entre as folhas para identificar o usuário das botas; logo seu olhar alinhou-se com uma pequena brecha na folhagem, e então viu boa parte do rosto suado do sujeito brilhando ao sol: era um homem medonho, com os dentes podres arreganhados no sorriso demente de quem está prestes a praticar alguma perversidade. Fazia gestos silenciosos para alguém que o menino, de onde estava, não podia ver, aparentemente ordenando que essa pessoa fosse pelo outro lado para cercá-lo. Sem esperar mais, Carlitos disparou colina a baixo como uma flecha, e na mesma hora uma sucessão de gritos se fez ouvir às suas costas:
— Apre!, o danado escafedeu!
— Tá fugindo!
— Eita, que o miserável é resvaloso!
— Cata o pinguinho de gente!
— Deixa escapulir não!
— Alto aí, pentelho! Corre não, que é pior!
Eram vários fruticultores, munidos de foices e facões, conforme o menino podia vislumbrar nas olhadas que dava para trás em plena carreira.
A perseguição desdobrou-se por toda a descida e continuou matagal a dentro, em direção à estrada. Percebendo a aproximação dos homens às suas costas e calculando que seria alcançado por eles em poucos segundos, Carlitos decidiu abandonar o traçado sinuoso da trilha e mergulhou na massa de árvores e arbustos, galhos se partindo à sua passagem, folhas de gosto amargo invadindo-lhe a boca; pequeno e franzino, podia se deslocar através daquele emaranhado de obstáculos com muito mais facilidade que os perseguidores, e assim começou a deixá-los para trás. No afã desesperado de escapar, não podia perceber, agora, e tampouco poderia se lembrar, no futuro, que avançava tropicando nas raízes das árvores, às vezes caindo e tornando a pôr-se de pé num pulo, com uma agilidade que jamais suspeitara possuir, às vezes agitando braços e pernas desvairadamente para se desvencilhar dos cipós em que se enredava.
Só quando parou para respirar foi que deu-se conta de haver perdido completamente a noção de para qual lado ficava a rodovia; agora tudo ao redor eram folhas e mais folhas, cipós e mais cipós, galhos e mais galhos, todos indistinguíveis uns dos outros. Ofegante, curvou o corpo para a frente, escorando as mãos nos joelhos; fechou os olhos, apurou a audição e tentou captar o som de algum veículo passando. Mas a única coisa que conseguiu ouvir — além das batidas violentas do próprio coração, além do canto dos pássaros e além do farfalhar produzido pela dança da copa das árvores ao vento —, a única coisa que conseguiu ouvir foi as vozes dos fruticultores, que soavam meio confusas à distância. Ao que parecia, eles tinham se espalhado pela mata, de maneira que precisavam se comunicar aos berros.
— Ei, Rui, que lado que ele enveredou?
— Sei não, parece até que sumiu!
— Bora deitar mão nele!
— Bora, deve tá longe não!
Sem saber o que fazer a seguir, Carlitos começou a pensar que talvez não fosse má ideia ficar ali mesmo, bem quietinho, esperando os homens desistirem de procurá-lo. Caso viessem em sua direção e conseguissem pegá-lo, considerou, poderia recorrer a algum discurso súplice para tentar acalmá-los e dissuadi-los de suas intenções malignas, fossem lá quais fossem. Após alguns instantes de reflexão, concluiu que não havia plano melhor e, tencionando deitar-se exatamente onde estava, avaliou o chão para ver se não havia espinhos ou urtigas; foi quando percebeu uma coisa: seus pés tinham desaparecido por completo, enfiados como estavam naquele solo pastoso. Sem dúvida encontrava-se em algum ponto do mesmo lamaçal onde tinha perdido os chinelos, o que lhe permitiu deduzir o rumo certo para chegar à estrada; assim, mudou de ideia e decidiu ir a diante, em vez de permanecer ali.
Raciocinando com muito mais clareza após a parada para tomar fôlego, e como agora sabia que os homens o tinham perdido de vista, achou melhor não correr, pois temia que a estralaçada de galhos quebrando denunciasse sua posição. Seguiu, portanto, lentamente, tentando fazer o mínimo de barulho possível.
Vários minutos depois, quando por fim já escutava perfeitamente o som dos carros e até podia ver, pelas brechas do matagal, o vulto deles passando na rodovia, logo adiante, sentiu um alívio indizível encher-lhe o peito. Igualmente indizível, porém, foi o susto que levou no momento em que uma voz áspera se espalhou pelo ar:
— Ei! Tá cá! Achei! Tá cá, cambada, achei! Tá cá o danado! Vem, vem, vem!
Não foi necessário mais do que isso para que o menino se lançasse outra vez em disparada. Mas agora a salvação estava próxima: mais uns poucos metros e se veria fora da mata e bastaria chegar ao restaurante e fazer um escândalo e gritar a plenos pulmões que queriam matá-lo e jogar-se aos pés de alguém e implorar por ajuda!
Qualquer um que visse a maneira desatinada como Carlitos saiu do meio dos arbustos — projetando-se veloz à frente tal qual um cão de corrida e deixando atrás de si um rastro de folhas arrancadas rodopiando no ar —, qualquer um que visse isso poderia jurar que a floresta acabava de cuspi-lo. Tudo aconteceu rápido demais, sem que houvesse tempo para nada, de modo que seria injusto culpar o motorista do caminhão que terminou por atropelá-lo. Por sorte, muita sorte, o caminhoneiro vinha devagarinho, pois se preparava para estacionar no restaurante, mas ainda assim o impacto fez o menino ir parar metros adiante, estendido no asfalto.