Um trecho de romance de Leonor Cione
Leonor Cione nasceu em São Paulo, SP, onde trabalha como escritora e tradutora. É pós-graduada em Tradução de Inglês pela Universidade Gama Filho e em Formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz. Publicou duas histórias para crianças: Tablet, tablet meu (Editora Cuore, 2014) e Onde é o meu lugar? (Revista Carta Fundamental, 2014). Alguns dos seus contos e poemas fazem parte das antologias Colar de oito voltas (Carapaça Edições, 2017), Mulherio das Letras (Mariposa Cartonera, 2017) e 2ª Coletânea Poética do Mulherio das Letras (ABR Editora, 2018). Como integrante do Coletivo Literatura Clandestina, participa da obra Verdades de uma Escritora (Editora Lamparina Luminosa, 2018). O seu primeiro romance, O estigma de L. (Editora Quelônio), está na lista dos Melhores Livros de 2018 do Suplemento Pernambuco e foi indicado ao prêmio de Melhor Livro de 2017 – Autor Estreante com mais de 40 anos, na 11ª edição do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.
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Trecho de O Estigma de L., de Leonor Cione
Liliana. O nome Liliana soa próximo, íntimo, agora que dona Lili, como insistem em chamá-la no sanatório, o escuta em sua memória, nítido. Seu nome é Liliana. É bom voltar.
Nem bem acolhe esta descoberta, vê Celeste criança correndo para um carrossel e subindo no cavalinho branco – o animal com a boca aberta em relincho -, ao mesmo tempo em que Francisco se afasta em direção ao carrinho vermelho das maçãs do amor.
O carrossel gira, Celeste sorri e acena com as duas mãos. Os cavalinhos sobem e descem, a velocidade aumenta. Liliana acena de volta, faz sinal para a filha segurar firme.
Os giros seguem, Liliana e Celeste acenam de novo uma para outra. Onde está Francisco, que não volta?
As crianças riem e dão gritinhos em cima dos cavalos. Liliana avista Francisco de perfil, no espaço entre os cavalinhos, parado do outro lado do carrossel, que continua a dar suas voltas e voltas.
O cavalo malhado de marrom e branco passa: Francisco sorri para alguém que Liliana não vê, o cavalo azul de rabo branco impede a visão. É a vez do cavalo dourado cintilante: uma mulher se aproxima de Francisco. O cavalo branco de boca aberta em relincho cobre momentaneamente Francisco, que está com quatro maçãs do amor, duas em cada mão. Celeste acena e sorri, mas ele não presta atenção à filha. Passa o cavalo preto empinando, as patas dianteiras no ar: a mulher estende a mão para Francisco, que entrega a ela uma maçã do amor, sem nem mesmo afastarem os olhos um do outro. Agora o cavalo prateado de olhos arregalados cobre a sua visão para depois seguir seu giro: a mulher segura a maçã do amor, os olhos nos olhos de Francisco, e aproxima-se mais ainda dele, os cabelos compridos esvoaçando. Liliana penteia com os dedos os cabelos curtos de corte prático. Volta o cavalo branco de boca aberta em relincho: Celeste joga a cabeça para trás, gargalhando, mas Liliana, zonza, não sorri nem acena para a filha, tem o olhar fixo no outro lado do carrossel. As cabeças de Francisco e da mulher bem juntas, a mulher levanta a maçã do amor e a coloca em frente ao rosto, brincando de separar bocas e beijos. O cavalo marrom malhado de branco, mais uma vez. Liliana arregala os olhos para tentar equilibrar as lágrimas.
O carrossel vai diminuindo a velocidade e Liliana avista a imagem trêmula e úmida de Francisco flutuando em sua direção. Ele segura três maçãs do amor. Completamente aturdida, aceita a maçã que Francisco oferece. Celeste chega correndo e pega a sua das mãos do pai. Liliana conseguiu. As lágrimas não escorreram.
Lili agarra-se às grades de ferro da sua cama na enfermaria do sanatório, atordoada e arfando, como se tivesse acabado de ver um carrossel girando desenfreado. Sacode a cabeça e fecha os olhos, querendo livrar-se das recordações, mas não adianta.
Agora ela está chorando, em outra cama, uma cama de casal.
Liliana chora, sentada na cama sem Francisco, olhando pela janela. De nada tinha servido fingir não ter percebido nada, que não sabia de nada. Engoliu a traição, pediu para ele ficar. Pediu mais uma chance. Chance de quê? Não seria ele quem teria de pedir isso à ela? Medo de ficar sozinha, de não conseguir criar Celeste sem ele, de não ser uma pessoa inteira, sem ele, depois de dezesseis anos casados. Humilhou-se. E de nada adiantou. Depois de uns meses, Francisco foi morar com a mulher do parque de diversões.