Um trecho de romance de Marcelo Maluf
Marcelo Maluf é escritor e professor de criação literária. Mestre em Artes pela Unesp. Escreveu o livro de contos Esquece tudo agora (Terracota, 2012) e o infantil As mil e uma histórias de Manuela (Autêntica, 2013), entre outros. Em 2015, publicou o romance A imensidão íntima dos carneiros (Editora Reformatório), livro finalista do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA, 2015), finalista do Prêmio Jabuti (2016) e Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (2016), na categoria estreante com mais de 40 anos.
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A imensidão íntima dos carneiros (trecho inicial do romance)
O medo estava no princípio de tudo.
O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa família. Nós sempre estivemos sob o seu domínio. O medo estava em nossos ancestrais, os Gassanidas, em Huran, próximo às colinas de Golan. No ano 724 d.C., um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristão. Sua mãe, que assistia a tudo, gritava para ele: “Morra como um homem, meu filho, não chore”. Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar até nós.
O medo seguiu sua jornada, como as águas de um rio fazendo o seu percurso, e desaguou em Simão, meu bisavô, ao ouvir o trotar dos cavalos dos soldados turcos aproximarem-se da aldeia. O medo estava em Assaad, seu filho, quando pastoreava carneiros nas montanhas de Zahle, e estava em Michel, meu pai, quando vendia cambraia, gabardine e organza em sua pequena loja em Santa Bárbara D’Oeste.
Quando eu nasci, sob o sol daquele mês de janeiro, o medo estava no meu primeiro choro. O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto. Um medo que subiu e desceu as montanhas, que atravessou o oceano num navio e veio se misturar ao fluido amniótico que me envolvia no ventre materno. O medo estava nos olhos da minha mãe na hora do parto, nas mãos suadas do meu pai e no corpo inteiro do médico que me segurava pelos pés. O medo estava na corda envolvendo os pescoços de Adib e Rafiq e estava nas mãos do algoz que forjou o seu nó.
Aprendi que o medo nos preserva de viver e nos dá a morte em vida. O medo também nos torna cruéis e, escravos dele, podemos nos tornar assassinos. E é da morte que todos da nossa família têm medo desde sempre. Temos medo e por isso preservamos tanto as nossas vidas a ponto de não vivermos tudo o que poderíamos ter vivido.
Alguns dias após a morte de meu pai, em fevereiro de 2000, eu me vi numa pequena praia no litoral norte de São Paulo. Os raios de sol aqueceram o meu corpo e todos os meus órgãos internos se encheram de entusiasmo. As ondas arrebentando nas rochas funcionavam como um ruído zen e abafavam os barulhos do mundo. Confesso não haver nada melhor do que a imensidão do oceano para colocar as coisas no lugar certo dentro de mim.
Sentado na areia, sem desejar nada além de estar ali, entregue àquela contemplação, eu me deparei com um grupo de carneiros se debatendo em alto-mar. Caminhei desorientado pela praia, esfregando os olhos, esforçando-me para acordar, caso estivesse sonhando. Mas os carneiros continuavam ali e outros iam surgindo, como se brotassem das águas. Foi quando eu engoli uma gota de água salgada do oceano Atlântico trazida pelo vento.
A praia estava deserta. Não havia com quem eu pudesse dividir a minha dúvida: era uma miragem ou os carneiros estavam realmente lutando por suas vidas? Pensei que se caso eu tivesse um pequeno barco, conseguiria ao menos salvar alguns. Mas não havia nenhum barco. Fiquei assistindo, passivo, durante horas os carneiros se debaterem e se entregarem aos braços de Iemanjá. O vento a coordenar a dança das ondas.
Naquela noite eu sonhei com Assaad, meu avô, e com Michel, meu pai. Vestido de branco, Michel colocava em minhas mãos um punhado de pelos úmidos de carneiro.
Assaad dirigia-se a mim como irmão e dizia que tinha uma história para me contar. Pela manhã corri para a praia, certo de que iria encontrar alguns corpos de carneiros na areia.
Mas ao invés de carneiros, encontrei dezenas de águas vivas.
Passei a acreditar, de maneira obsessiva, que eu precisava de alguma maneira me comunicar com Assaad. E o sonho ainda se repetiu algumas madrugadas. Sempre com Assaad me dizendo a mesma frase: “Tenho uma história para te contar”. Eu pensava que ele poderia usar o próprio sonho para dizer. Mas por algum motivo que me é desconhecido até hoje, nos sonhos ele apenas dizia: “Tenho uma história para te contar”. E essa frase se repetia em minha mente como um mantra involuntário.
Pela manhã fui surpreendido por um carneiro subindo o morro próximo às rochas. “Nem todos os carneiros se afogaram”, pensei. Pelo menos um deles sabia nadar. Subi o morro, queria vê-lo de perto. O carneiro dormia à sombra de uma velha árvore e fingiu não dar nenhuma importância para minha presença, nem para a ventania que lançava as folhas da árvore em seu rosto. Quando me aproximei, quase a ponto de tocá-lo, ele disse:
“Por que não se lançou ao mar para nos salvar?”. Não havia rancor em sua voz, mas decepção. Eu estava diante de um carneiro que lamentava a minha falta de heroísmo.
“Eu não tive como.” Tentei me justificar.
“Você não sabe nadar, é isso?” Agora o carneiro estava sendo irônico.
“Sim, eu sei.”
“Então por que você ficou lá, feito um idiota, apenas observando a morte vir e levar com ela todos os meus irmãos?” Eu não soube dizer nada. Não encontrei nenhuma palavra que se encaixasse e pudesse me redimir de seu questionamento. Deixei apenas escapar, do mesmo jeito idiota, um suspiro.
“Mas…”
“Só havia você lá. E mesmo assim não nos socorreu. Por quê?”
Nesse momento senti que nunca havia feito nada diante das turbulências. Sempre ficava esperando, como um espectador passivo, a cena se completar à minha frente. E antes mesmo que eu pudesse elaborar qualquer pergunta, ele se levantou, chacoalhou o corpo e algumas folhas se soltaram de seus pelos.
“Os seus antepassados teriam vergonha de você. Agora vá e me deixe sozinho aqui com a minha dor.” Fui. Envergonhado.