Um trecho de romance de Márcia Barbieri
Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras (Port-Francês) pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Terracota, 2014) e O enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018. O romance A casa das aranhas será lançado no final do ano.
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Trecho do romance A casa das aranhas – terceiro livro da trilogia sobre o corpo
Ela não se mexeu, não considerei sua atitude um ato esnobe, embora ela em vida tenha me parecido um ser suspenso∗, como se tivesse vergonha de fazer parte da pobre condição humana. Por acaso, alguém se orgulhava¿ Ela admirava a plasticidade e passividade das bonecas, mas não tinha paciência para tanto. Não tenho o direito de julgá-la, eu nunca me senti em casa tendo que andar com a coluna ereta e com os joelhos semi-flexionados, caber na vida é tarefa para os idiotas, apenas os insossos se encaixam perfeitamente nesse sistema falido, armando planos mirabolantes de futuro e seguindo planilhas, nós, os outros, estamos constantemente à espreita, tecendo incoerências, vigiando o guinchado mórbido dos ratos, o voo caótico e ingênuo das baratas, do outro lado do muro ou quem sabe emparedados, outsiders. Não suspeito que seja algo lógico levantar todas as manhãs, embaralhar os ponteiros estéreis e eretos do relógio, assassinar a memória das madrugadas, fazer força para que o amor se sustente com suas pernas frágeis e bambas, arrumar as camas e desarrumá-las após noites de sono pesado e sexo parco e ainda assim manter o pau enrijecido [quem me dera dormir todas as noites com putas, as putas evitaram que uma nação inteira de homens psicopatas vingassem, as revoluções dos homens tolos acabam depois de uma foda bem dada, foi assim que descobri os campos minados na China e desarmei as bombas que trazia comigo]. Vejo mais sentido na inconsciência bruta dos animais, nos seus urros roucos, nas suas lutas por acasalamento e comida, no seu sono absoluto, nas suas covas fundas para enterrar ossos mortos. Vejo mais beleza na cópula mórbida das aranhas, nos ninhos vazios e nos fogos de artifícios para brindar um novo ano. Andei devagar pelos cômodos escuros, acompanhando a música fúnebre que saía das lajotas gastas. Como era solene estar ao lado de um corpo em que todo o ar fora desalojado. Escutava baixinho ecoando o som do ohmmm. Cheguei mais uma vez ao seu lado, olhei o seu peito, escutei um chiado, pensei naquelas pequenas caixinhas de música onde uma bailarina girava, fiquei mais atento, depois escutei um grunhido quase inaudível, gostava quando grunhia, isso te aproximava dos animais ferozes e de distanciava das mulheres comuns, e você sabe, não gostava de pessoas comuns, elas me entediavam. Escutei uma sílaba breve, imagino que ela estivesse pronta para o diálogo, foram anos e anos de espera, sabia que um dia ela sairia da inércia e me responderia, ainda que em parábolas, ainda que as respostas não me agradassem ou não suprissem a sua insuficiência, nada amenizaria a sua falta. Ninguém poderia ocupar um espaço tomado pelos seus ecos. Nenhum animal doméstico poderia substituir os seus afagos, faltaria aos animais a sutileza de como escorregava as unhas pelas minhas costas fria. Nenhum bicho poderia preencher as lacunas das paredes esvaziadas. Nenhum cão ladraria para disfarçar o silêncio do quarto lacrado. Nenhuma noite bem dormida conseguiria acabar com as olheiras que consumiam meu olhar. Era inevitável, eu te esperava, pacientemente eu te esperava. Como as crianças bobas esperam os seus peixes abrirem e fecharem a boca nos minúsculos aquários. As decisões nunca são tomadas sozinhas. Não queira se isentar da responsabilidade da escolha. Eu não me calei sozinha e nem por vontade própria, afinal, minha verborragia sempre te assombrava. Meu verbo era lâmina e você não estava disposto a macular sua pele. Não se faz omelete sem quebrar os ovos. Esse era um ensinamento prático, não era¿ Não era você que vivia repetindo sobre os benefícios de ser um homem prático¿ Mas, você queria se envolver e ao mesmo tempo estar confortável em sua blindagem. Ninguém entra no campo de batalha se não estiver disposto a ter os membros amputados. Será que era tão difícil entender¿ Foi você que nunca quis conversar, considerava que não podia haver relevância nas falas longas e circulares das mulheres, achava que um café cairia melhor e eu trazia o café, em silêncio. O quê, além do silêncio era meu campo de pertencimento¿ Talvez o meu corpo¿ No entanto, meu corpo era terra tomada. Quantas trincheiras foram armadas dentro da fragilidade dos meus orifícios¿ Quantos soldados foram mortos sob minha desordem¿ Quantas mulheres se mataram embaixo das minhas mandíbulas¿ Quantas crianças órfãos se exilaram sobre minhas mucosas¿ Havia uma ordem secreta¿ Havia uma lei que pudesse ordenar minhas desgraças¿ Havia uma reza que me absolveria¿ Havia uma outra vida embaixo dessa vida¿ A sua boca poderia evitar os extermínios¿ Você nunca esteve dentro do seu campo de domínio. Estrategicamente fora. Porque o mundo era um esquadro e você não podia lidar com ele. Mentira! Como pode fingir tanto¿ Como pode falar de mim como se falasse de um estranho¿ Eu estava ao seu lado o tempo inteiro, tanto que minha carne se confundia com a sua carne, minha boca com a sua boca, você está sendo ingrata, como o habitual, isso nem me assusta mais. Sim, é verdade, você estava lá, a matéria tem essa estranha magia de preencher falsamente os espaços, você estava lá como estava lá a estante, o rádio, o criado-mudo, a cama, o abajur apagado, os vermes desmaiados debaixo da terra. Os átomos têm formas diferentes de se agrupar, mas realmente não há grande diferença entre um homem e um pedaço de madeira maciça. A omissão se esconde atrás de muitas máscaras. Eu fui o melhor homem que eu poderia ser. Não podia operar uma máquina desconhecida, isso estava fora do meu alcance. Um homem não pode querer ter a dimensão de um Deus. Sim, e isso foi tão pouco, bem menos do que eu precisava. Humano, demasiadamente humano. Utilidades, sim, esse era o seu problema, você queria que eu te servisse, como uma tigela ou uma forma em que se abriga perfeitamente o alimento depositado, mas um homem não tem medidas, ele é ou não é. Você não foi. Mas, eu ainda estou aqui, fazendo o inventário das tralhas que deixou. Você acha isso pouco¿ Quem mais faria isso por você¿ Você sabe que a disciplina e o preço dos objetos nunca me interessaram, pelo menos deveria saber depois de tantos anos juntos. As coisas abstratas me interessavam mais. Sim, isso é verdade, você não gostava das burocracias, no entanto, elas existiam, alguém precisava arcar com as coisas práticas, com a aritmética das coisas inválidas. Sim, tinha esquecido que a minha abstração te custava caro. Eu não te cobrava nada. Nunca ousei te cobrar nada, embora os cálculos passassem pela minha cabeça. Ou você acha que as pragas são exterminadas sem sacrifícios¿ Sabe, eu acho que poderíamos ter dado certo. Em algum momento… Tivemos momentos bons. Faz tanto tempo… juro que não me lembro mais. Sabe, foi você que deixou o desejo escapar. O desejo não existe, nós o criamos para ter algo com que brincar, para não nos entediarmos com a estupidez da existência. E existe algo mais estúpido do que ter nascido homem ao invés de pedra¿ Não criamos o desejo, ele existe ou não existe, o resto são subterfúgios, conversa pra boi dormir. Não tente me ludibriar com palavras empoladas. Você já viu um gato caçando uma mosca¿ Ele faz isso porque não tem outra distração, ou ele caça se desviando do tédio ou dorme para aplacar o tédio, ele não deseja verdadeiramente a mosca, apenas quer caçar, a mosca é uma desculpa. Ele caça porque deseja a mosca. É obvio que não, e é fácil provar isso, o gato não come a mosca, o seu pote de ração está cheio. Não somos gatos e também é fácil provar isso, não caçamos moscas e não comemos rações em potes. E sim, embora finja não concordar, desejamos, as pessoas comuns desejam, os homens ordinários fodem. O desejo não passa de um cadáver gordo, um grande homem morto, inútil e pesado, nunca poderemos alcançá-lo. O desejo é a única coisa que vale a pena, não existe utilidade ou inutilidade dentro do desejo, não precisamos transportar esse grande defunto, é ele que nos move e não o contrário. Então, talvez o desejo tenha desistido de me mover, há anos não sinto nada. Não sabia que me odiava tanto, pensei que restasse algo. Eu não disse isso, eu não te odeio, como eu poderia ter um sentimento tão potente¿ É bem pior que isso, eu não sinto nada, nada, é como se todo o meu corpo estivesse adormecido. Eu não nasci pedra, eu me tornei pedra. Preferia que me odiasse e fodesse comigo sem se preocupar com questões metafísicas. Fode bem somente aqueles que não têm a mente depravada de questões transcendentais, talvez eu não goze nunca mais, nem com você nem com ninguém. Eu sou isso que pode ver, um defunto inchado e anestesiado, bem antes dessa morte oficial, eu já era isso, um corpo pacificado. Morrer foi sem dúvida nenhuma a melhor coisa que me aconteceu em anos. Sabe, uma aranha só tece suas teias porque ela supõe a existência da presa, sem presa não haveria nem o pensamento da aranha, a ausência da presa aniquilaria a aranha.
∗Entretanto, ela fazia questão de alertar que toda a espécie humana era suspensa por um tipo de linha frágil e puída, podíamos fingir demência, porém, ao menor descuido, despencaríamos como frutos podres, ninguém era imune à lei de Newton.