Um trecho de romance de Micheliny Verunschk
Micheliny Verunschk é autora dos romances O amor, esse obstáculo (Patuá, 2018), O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) e nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014), projeto com patrocínio da Petrobrás Cultural. Também é autora dos livros Geografia íntima do deserto (Landy, 2003), O observador e o nada (Edições Bagaço, 2003) e A cartografia da noite (Lumme Editor, 2010). O romance nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2015.
A foto da autora utilizada na página inicial é de Melissa Guimarães.
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Capítulo V de O amor, esse obstáculo, Micheliny Verunschk, Editora Patuá, 2018.
V
Para existir, o homem deve revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre em si e no qual os homens, ao se unirem, começam a existir. O pensamento revoltado, não pode, portanto, privar-se da memória: ele é uma tensão perpétua. Ao segui-lo em sua obra e nos seus atos, teremos que dizer a cada vez se ele continua fiel à sua nobreza primeira ou se, por cansaço e loucura, esquece-a, pelo contrário, em uma embriaguez de tirania ou de servidão.
Estas palavras de Camus chegaram a mim destacadas por um marcador de texto amarelo luminoso e pelo sotaque portenho de Mariana. Ela tirou o texto em xerox de dentro da bolsa e leu em voz alta, ali mesmo na rua, disputando com a massa sonora dos motores dos carros, buzinas, o burburinho da cidade. Havíamos saído do cinema e assistido a Dogville, de Lars von Trier, um filme perturbador sobre uma cidadezinha que ficava em “um país que se esqueceu de muita coisa”. Nada era por acaso ali. Pouco menos de um mês antes eu contara a Pablo, um amigo em comum, que cursava Filosofia na mesma faculdade que eu, sobre minhas angústias e de como avançavam as investigações que eu fazia sobre o passado político do meu pai. Àquela altura eu procurara uma antiga amiga da escola primária por conta de um episódio da infância que fora um tanto assustador.
Foi pouco antes de mudarmos para Santana do Mato Verde, eu devia estar com uns dez anos e fui à casa da minha amiga para estudar. Era a primeira vez que eu ia sozinha à casa de alguém. Papai era muito cioso e não permitia a mim e à minha irmã mais velha um trânsito livre na casa de amigas ou amigos. Aliás, havia poucas amigas e amigos. Entretanto eu ia mal em algumas matérias, e Ana Maria se ofereceu para ajudar. Não fazia muito tempo, seu tio, um homem silencioso e que me pareceu acabrunhado, havia ido morar em sua casa. Eu nunca o tinha visto, mas durante o lanche da tarde percebi que não havia unhas em nenhum dos seus dedos, e sem refrear a minha língua e curiosidade, perguntei o que havia acontecido com elas. O silêncio foi constrangedor, o homem me olhou muito profundamente nos olhos, e desejei naquela hora ter desaparecido dali como mágica.
Os dedos dele, papai, eram como salsichas, nenhuma unha, nenhumazinha só, contei quando cheguei em casa.
Papai, vermelho, incomodado, sentenciou que eu não voltaria à casa da minha amiga, o que me deixou inconformada. O que me pareceu um preconceito incabível anos mais tarde acabou se revelando coisa muito pior. Ao descobrir que um dos métodos de tortura utilizados durante a ditadura era a extração de unhas do prisioneiro, a contundência daquela cena e a intransigência do cowboy se juntaram em um transtorno que martelou seus pregos em mim por semanas, meses. Minha vida toda eu me sentindo como o velho inglês que passou sete anos montando um quebra-cabeças de cinco mil peças para enfim descobrir que faltava uma.
4.999 peças e uma paisagem para sempre incompleta, eis o resumo de minha vida àquela altura.
Ana Maria lembrava de mim. O rosto redondo por trás da armação de óculos azul recordava vagamente a menina que ela fora. Fui honesta. Contei que desconfiava que meu pai havia sido um torturador e gostaria de saber se o tio dela havia sido preso político, se havia sido torturado por meu pai, e quem sabe até conversar com ele. Ela, por sua vez, não pareceu surpresa.
Tio Inácio morreu. Ele foi preso político, sim. E ficou com sequelas físicas, como você bem lembra, e emocionais. Ele era muito discreto sobre o que passou na prisão. Quando foi solto, voltou a morar com a minha avó, mas, depois que ela morreu, passou a peregrinar nas casas dos familiares, ficou um tempo na casa de outro irmão, depois uma temporada mais longa na casa de um primo, no interior. Não demorou muito tempo conosco, ficou agitado, paranoico, disse que viu um dos torturadores rondando nossa casa e, porque se sentia perseguido, acabou voltando ao interior por um tempo e depois foi embora do Brasil. Há dois anos foi encontrado morto.
Ela franziu a testa.
Suicídio?, perguntei.
Não, mas complicações de saúde por conta das torturas que sofreu. Nossa família vem procurando uma reparação do Estado.
Ele pode ter visto meu pai quando fui à sua casa. E meu pai pode ter rondado a vizinhança, para assustá-lo.
Os olhos de Ana Maria marejaram, e as lentes embaçaram de leve. Que grande filho da puta era o xerife. Ana Maria e outros familiares de mortos e desaparecidos políticos, além de advogados e militantes dos direitos humanos, vinham trabalhando ao longo dos anos pelo direito à memória e a uma história que pudesse confrontar as atrocidades cometidas pelo Estado contra os cidadãos. Tratava-se de uma luta simultaneamente necessária e inglória, a violência e o terror promovidos pelos agentes da ditadura eram proporcionais à má vontade política e jurídica em reconhecer esses crimes e à pressa em isentar o Estado de seu investimento ideológico, pessoal e financeiro no terror contra os próprios cidadãos. O Estado brasileiro seguia sendo o Whitworth 32, a Matadeira, canhão adquirido para dizimar os sertanejos do arraial de Canudos no início do século XX. Que imagem, aliás, melhor para definir esse Estado? Contam que alguns canudenses se reuniram para atacar o canhão e, como os militantes contra o regime de 1964, morreram tentando. No encontro do ferro contra a carne, o ferro duro, a carne mole, só um sai vencedor. Sabemos disso desde que a humanidade entrou na Idade dos Metais. E os vencedores contam a história como querem. Inclusive não a contando. Inclusive falseando a verdade.
Mais tarde, conversando com Susana e minha avó, supusemos que aquele possível encontro ou cerco entre a vítima e o seu algoz pode ter determinado nossa mudança para Santana do Mato Verde. Papai queria deixar para trás o rastro de lama que imprimira na história do país e da nossa família.
Minha avó, o peito inflado de indignação, disse,
Seu pai fará o que for preciso para apagar os rastros do que ele fez, mas tem uma passagem na Bíblia de que gosto muito e que não quero que vocês esqueçam: nada há de oculto que não possa ser revelado. Entenderam? Vocês são jovens, mas são espertas. Nada há de oculto que não possa ser revelado.
Quando contei a Pablo sobre o encontro com Ana Maria e o percurso que eu fazia tentando recompor minha história, ele me falou sobre Mariana.
Você precisa conhecer Mariana. É sério isso. Preciso apresentar vocês duas.
Por quê? Em que Mariana pode me ajudar?
Mariana é filha de um torturador argentino. E também está tentando compreender a própria história. Vocês precisam se conhecer.