Um trecho de romance de Naná DeLuca
Naná DeLuca escreve literatura, é educadore popular e mestre em Letras pela USP. Só sabe ler, escrever e falar. De resto, investiga. Abaixo, segue o capítulo 2 de seu romance O sexo dos tubarões (Patuá, 2017).
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2
Esse sexo que eu vi contava uma outra história, diferente daquela da multiplicação. Tocai-vos umas às outras. Não me abandonava o tubarão arranha tubarão. Sabia agora que eram as criaturas mais belas. O tubarão que nadava em meu peito especulava uma denúncia: talvez você também seja tubarão. De início, me pareceu um estranho delírio. Mas uma vez que tubarões me salvaram a vida, queria lhes fazer agrado.
Para as praias ia prestar minhas homenagens. Mandava pelas espumas relíquias das areias. Conchas e plantas. Flores, se as encontrava. Oferecia perfumes e pedras de rio que acreditava preciosas. Mas, mais do que tudo, gostava de sentir proximidade. Eis meus pés que pisam as águas. Podem levá-los. Eis minhas mãos que entregam dedicatórias. Não tenho desejo algum, além de aqui estar e ser. Da beira do mar, a criança lhes dava devoção alimentando a esperança de que isto fosse suficiente. Meu tubarão compreendia tudo e também era reconfortado. Criança e tubarão, calmos nesta novatopia. Talvez tivéssemos assim feito até a vida adulta. Cultivado o respeito e a adoração em breves peregrinações às beiras dos mares.
Tive de sussurrar confissões entre insônias e sonhos: talvez eu realmente fosse me tornar tubarão. Soava um tanto absurdo, de criança se tornar tubarão. Um tanto incorreto. Mas possível, tão possível. Os pequenos rituais de devoção passaram a ter uma certa carga de culpa: não se deve querer ser aquele que se adora. Deve-se somente adorar. E quanto mais oferendas afogava nas ondas, mais me parecia certo o destino de ser tubarão e mais eu temia este destino intraçável, invisível. Parecia bom ser só criança com tubarão dentro. E depois algo maior, mais esticado. Era certo e tinha caminho visível, preciso. Ali seria criança, chamariam de menina. Eu poderia me multiplicar e morrer na fronteira entre mar e areia. Não sem antes dar uma última flor aos tubarões que eu não enxergava.
Mas meu tubarão me ninava com uma cantiga estranha que dizia de dia é menina e de noite é tubarão. Um dia, então, tive de me dizer, tive de admitir é, sou tubarão. A bolha só chegou na superfície; deixei vazar apenas até a boca e apenas para mim. Sem nenhum tubarão para ouvir. Vapores de alívio, no entanto.
Não me deixei morrer de sede só por isso. Talvez tenha envolvido discrição em minha adoração por tubarões. Acredito que tenha ocultado um pouco para não criar caso. E talvez, também, eu tivesse um pouco de medo de dizer que era tubarão para qualquer um que não o tubarão dentro de mim. Concordar com ele me trouxe imenso alívio. Quando revelei, ele assentiu e disse que poderíamos, então, viver em tranquilidade até que eu sentisse vontade de ser tubarão no mar. A água de sal me transformaria: o corpo da criança se tornaria o corpo do tubarão que lá já estava. Entendi que não havia por quê correr. Ser tubarão era meu, viria às minhas mãos. Deixaria a vida viver. Saberia a hora.
Há dias que não são tempestuosos. Sequer há chuva, somente os rastros de que por perto ela passou. E nesse dia há no mar uma raiva cinza musgo. As ondas não se entendem e em seu debate terminam por se destruir. O vento flauta por todas as direções; apita no ouvido como um susto que se toma por todos os lados. Em um dia como esse, das areias eu contemplava aquelas fúrias e as queria controlar. Não poderia oferecer meus presentes aos tubarões se não o fizesse. Ergui os braços em convicção e tentava forçar as ondas a seguirem minha regência. Peito cheio de certeza: funcionava. As águas cediam às minhas vontades, os ventos obedeciam. Profundo encanto: o mar se apaixonava por mim. Eu apaziguava suas ressacas. Desentortava as ondas bárbaras e com harmonia elas quebravam em meus pés. Endireitava as correntes, desenrolava os redemoinhos. Eu desdava os nós líquidos de sua zanga.
Meu tubarão observava divertido. Encorajava. Guiava acalme aquela onda ou suspire aquela nuvem. Também sentia deleite com aquela inusitada demonstração de força. Cometíamos uma audácia galante e em sorrisos nos sentíamos satisfeitos. Juntos, pensávamos, poderíamos beber todos os mares. Esperava que outros tubarões, mesmo se separados de nós pelo mar e pelo acaso dos corpos, percebessem que ali eu fazia algo de extrema devoção. Manipulava o mar para que pudesse abrir passagem aos meu tributos débeis. Isto, por si só, deveria ser belo tributo: compensava todos os outros.
A tarefa não surtia efeito duradouro. Quando acalmava o mar de lá, ele se embrutecia de cá. Quando ordenava as ventanias do sul, elas rajavam coléricas do leste. A cada vez que exercia minha soberania sobre uma das forças, outra logo se interpunha. Meus esforços prolongavam meus esforços. Por muito tempo durou esse olímpico gato e rato; força que não pode cessar contra resistência que não pode sucumbir. O tubarão de dentro dizia, então, vamos embora, vamos embora. Recusava-me. Não enquanto não pudesse em segurança transmitir minhas dádivas. Já havia me contentado com o fato de que deveria esperar para me tornar tubarão, jamais aceitaria não poder de todo demonstrá-lo. Esse ritual, toda esta bobagem, respondi a ele, fora criado para marcar que existimos, que somos tubarão. Mostrava para mim, para as águas e praias, para as criaturas todas, que eu o sabia. E gostava. E não queria ser nada que não tubarão, pois tubarão era eu também. Estava ali. Como criança não poderia mostrar o tubarão em mim, sequer saberia; as conchas, plantas, perfumes o faziam em meu lugar. Era um segredo que só poderia ser compartilhado com o mar e pelo mar. Se o mar não mais o quisesse, se não deixasse que eu enviasse os presentes aos tubarões, eu estaria em completa solidão.
A criança não via o perigo, isto sei, porque era a criança. O tubarão se agitava, apressava, dizia vamos embora, vamos embora, hoje já foi, vamos embora. A criança não ouvia e continuava a reger o conserto do mar. Não ouviu o aviso. A ameaça. Outra criatura, outra criatura homem seguia. Homem que é mais forte que a criança. Homem que segue a criança, caça a criança. Ele observa e não tem olhos para ver que aquela ali mandava nos ventos e nas águas. O tubarão alertava agitando águas até então tranquilas em mim: vamos embora, vamos embora. O homem se aproxima, ronda. Fareja.
Não havia mais esperanças, não era possível acalmar de todo o mar. Não seria possível mergulhar para enviar os presentes aos tubarões. Mas eu prosseguia. Nada poderia me deter: consolaria o mar até que dormisse. Afagaria seus ventos e ondas até que encontrassem o equilíbrio do qual precisávamos.
O homem atacou a criança. E, então, ela não tinha mais a força de controlar elementos. Era fraca. Não tinha poder algum e sentia como se nunca o tivesse tido. Era a mais fraca das criações do mundo.
Que dor sentimos naquele instante, criança e tubarão. Sofria estatelada a criança. Fraca. Não era o sexo dos tubarões. Violência cantava aquele refrão. O homem fez tanta dor que a criança alucinou que não sentia mais dor alguma. A criança não sabia lutar. O tubarão, no entanto, sabia.
Nele também se fez algo naquele instante, algo inédito. Fez-se ódio. E estava inconsolável sob o peso da própria fragilidade no corpo da criança. Há tão pouco tempo, era deidade dos oceanos. E, tão de repente, pele frouxa. Esperamos morrer.
E, então, o tubarão me salvou, pois emergiu; lá longe, de nossa realidade tão melhor, disse vamos sobreviver. Fez mexer braços e pernas. Fez corpo se erguer e pés chisparem pelas areias. Que o mar devorasse a todos nós, criança, homem, tubarão. Corriam os três e sabia que de lá nenhum jamais voltaria.
Violência. A criança lutava, lutou. Fraca. Desesperada para que o mar viesse. Fraca. Era preciso se tornar tubarão: tomada de um medo sem nome. Ali e agora deveria se tornar tubarão. Corra, corra. O tubarão fazia fugir. E corriam feridos ao verde opaco, às sombras cinzas. Areia espirrando dos pés, pés afundando na areia; as ondas que estapeavam as areias úmidas, cantiga em pó. O mar esperava a criança.
Era o momento. Jogou-se nas ondas assim que os tornozelos sentiram a água. Corpo em colisão com as espumas, foi abraçado por uma onda. E tudo era silêncio. O silêncio do se afogar, que já conhecia. Atrás vinha o homem. Ele procurava a criança gota nas águas. Esperava que o mar me matasse antes. E, então, por um segundo fui para sempre a criança, até que não o era. Transformação para além da dor ou do prazer: era sendo. Veio o tubarão e se foi a criança. Nos olhamos estáticos: apaixonados pelo que vimos no espelho. A criança partiu no ventre da onda que passou. Nunca mais a vi. Estava feliz por partir, eu sabia. Por um momento, quis pedir que ficasse em meu dorso, que nadasse comigo para sempre, mas sabia que ela recusaria. Ela queria partir; sabia que a criança no dorso confundiria o tubarão, seria um atraso.
O corpo que fugiu nas ondas emergiu, não mais criança. O tubarão matou tranquilo o homem que procurava. Afogou, rasgou, levou pedaços e espalhou em volta.
Violência faz gente adulta. Tubarão.