Um trecho de romance de Narjara Medeiros
Narjara Medeiros é autora do livro de contos Rasteira no campo de caniços (2010) e dos romances Memória de antes cadáver (2012) e O cavalo vestido (2014), todos publicados pela 7Letras. Estudou Filosofia (UFG) e Enologia (Unipampa). Atualmente mora e trabalha no Uruguai.
O trecho abaixo é um fragmento de um livro inédito a ser publicado pela 7Letras.
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faz frio em algum lugar do mundo por isso começo a pensar sobre a verdade
Nos olhamos a primeira vez em Jalisco ou Granada ou Taif ou Bento Gonçalves porque era tão solar a dimensão do amarelo e era tão real a possibilidade de um mar vermelho molhando a costa do Egito e outro negro molhando os pés de um homem bom que desenha damascos e violinos em Batumi que as linhas riscando as fronteiras no mapa-múndi se abriram numa única linha costurando dois corações. E esse novo olhar que se faz do encontro de nossos olhos avista o que antes povoava imperceptível, os cloroplastos durante a fotossíntese, as mitocôndrias, as sereias, os pistilos minúsculos das viníferas numa pérgola de praça, as cordas que amarram o infinito em dois corpos que se entregam para o beijo num quarto que nos custou setenta reais no centro da cidade enquanto chove. Estamos agora num bar com cervejas de torneira e você escreve seu nome com letras estranhas inventadas por você e me conta sobre os tomates e já passa das dez horas da noite mas dentro de ti faz um sol ao meio dia numa primavera em Alter do Chão com boto tucuxi, corrupião flautas e muiraquitãs sobre o Tapajós. E só agora entendo o que Artur quis dizer quando disse que “o tempo líquido contém a memória infinita do tempo” e imediatamente avisto eu e você mergulhando no canyon Martvili, em Sagramelo, e as nossas papilas imantadas pelo sabor dos vinhos dos qvevris. E tens uma forma tão bonita de estar em tudo. E tens uma forma tão bonita de estar em tudo, que te vejo nas flores da rúcula no manjericão no hortelã no alecrim no alho poró no ruibarbo na mama-cadela nas sementes de papoula no azevém nas suculentas africanas na flor do maracujá, no relógio de bolso no fundo da piscina green que observo da janela do sétimo andar enquanto Liberato bebe uísque.
Porque gostas dos poemas beats hoje li Ferlinguetti e lavei copos de uísque na casa de um amigo onde tudo está imundo desde que no toca-disco não cessa as mais tristes de Keaton Henson. E desde que tocou a primeira vez o sentido da palavra amor ele não faz mais nada; não toma banho nem muda de lugar as lâmpadas queimadas. “I’ve been smoking a lot and starting to doubt if i’m breathing you in or smoking you out”. Porque tu gostas de vinil e toca-discos te desenhei sem camisa velejando em Jericoacoara e isso não tem nada a ver com vinil e toca-discos, e de repente te vejo num outono caminhando na Tristan Narvaja observando os músculos do passado, as tuas pernas dentro de um jeans desbotado e é tão sensual você cantarolando em espanhol e dizendo te quiero te quiero besos te quiero mucho, te imagino lendo Cortázar entregue a esse deslocamento ilimitado que traz um livro feito de sangue e espírito, e é tão bonita a tua intensidade, é tão bonita a tua intensidade, é uma onda forte, vibrátil, que arrasta e abraça tudo. E tens um modo de dormir que é só seu, como se tudo ao redor se transformasse em almofadas e ópio no alto de uma montanha no Ceilão. E te sinto deitado procurando paisagens nas intermitências das nuvens e essa forma de beijar umedecida está por tudo, e o cavalo branco Percheron relincha e isso é tão Alabama Shakes e as páginas rasgadas de mulheres nuas no chão da floresta das acácias é tão inusitado quanto aquele beijo à noite numa atmosfera fria com Pollock e Chico Buarque. Eu imagino nós dois nus deitados depois de alguns vinhos e marijuana e subitamente tu me perguntas como eu desenharia a imortalidade e te respondo que desenharia nossos corpos abraçados numa congruência pós-orgasmo boiando sobre o rio negro, e a fusão desses dois corpos é tão perfeita que eles se transformam na própria água que os cerca e depois no rio inteiro.
Estou agora em Montevidéu, Cassinoni esquina com Charrúa, apoiada num balcão construído com as portas de uma casa do passado onde as plantas cresciam saudáveis na sala e fora não haviam árvores. Desenho com o dedo um labirinto ao redor da mosca quase morta sobre a madeira, observo o seu mover de patas, um labirinto pode ter o tamanho que você quiser, circular ou quadrado, a córnea vem antes do olho, transparente como o que vem depois da morte. Nós dois sentados nas poltronas antigas de um ônibus Copsa que segue para o Viñedo de los Vientos acerca de Atlântida, dois pulmões ativos contando os cigarros da noite passada, os olhos fechados. Vejo o seu corpo agachado entre as beterrabas, a sua mão tão branca, te digo que podemos fazer uma omelete com as folhas e bacon e nóz-moscada e você sorri dizendo ser capaz de amar muitas mulheres ao mesmo tempo, eu sorrio também, digo que existem outras formas de dizer adeus, estamos os dois no mesmo lugar, venta como no início do mundo, e descobrimos que o nome desse lugar, Viñedo de los Vientos, é por causa de um surfista que anda muito à vontade com as coisas que existem por trás das nuvens. Eu digo que seria bom duas doses de conhaque. Olho o balcão, o caderno sobre o balcão, tento escrever sobre aquele último dia, porque sempre deve haver um último dia com fernet e diamantes. E não havia fernet e diamantes. Havia você, de jejum, para um exame de sangue e eu te pedindo para tomar própolis e estudar inglês. Você me explica qualquer coisa sobre o rock argentino, ji ji ji e vodka de chernobil, eu penso que pode ser melhor um samba torto ou uma ópera contemporânea no Teatro Solís. Depois um trompetista com pernas peludas e um par de sandálias havaianas. Você pergunta sobre a barba dele, digo que é mais escura e profunda do que a sua. Sigo com o dedo a textura da madeira no balcão do bar na Cassinoni com Charrúa, esse balcão tem a semente de um novo corpo, o barulho das despedidas, esse tchau noturno que transforma em rio a cama de plumas embaixo dos olhos. Olga pergunta para que lado está o rio Uruguai e o Negro. Eu digo que só sei dos rios que correm dentro de mim, não conheço os mapas Olga, não conheço o dezoito de maio, não conheço José Artigas, não sei por que a Inglaterra esteve aqui. Olga acende o cigarro pensando nas luas de José Cuneo, pensando também que a diferença entre os dias tem a ver com usar ou não o guarda-chuva. Gervásio escreve sobre os barcos. Tenho vergonha de dizer que penso em você dançando desajeitado, depois caminhando na minha frente, com presa de nada, com presa de dizer aquele eu te amo que nunca foi dito. Duas crianças conversam sobre as cores das vacas, sorrio olhando a paisagem se mesclar com os reflexos na sua cara. Você não está agora. Ninguém está agora. Esse tempo é o tempo onde todas as coisas existem num papel pequeno com um endereço onde ninguém compareceu. Eu não sei onde você está. Alguém morreu ontem e eu não quero falar sobre isso. Alguém morreu antes de ontem e eu também não quero falar sobre isso. A morte se tornou algo como um café con crema y medialunas. Um dia vai acontecer comigo. Em algum tempo as videiras plantadas, lado a lado, trarão ao mundo a imagem do nosso encontro.