Um trecho de romance de Rosângela Vieira Rocha
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG, e mudou-se para Brasília em 1968. Jornalista, escritora e professora aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, é advogada e Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP. Tem doze livros publicados, para adultos e crianças: Véspera de lua, Editora da UFMG, (romance), 1990, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG – 1988; Rio das pedras, Secretaria de Estado de Cultura, 2002, novela vencedora da Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores, além de ter sido classificada entre os dez finalistas da 4ª. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira; Pupilas ovais, (contos), LGE Editora, 2005, selecionado para obter o apoio do FAC/DF; A festa de Tati (infantil), Franco Editora, 2008; Fome de rosas (romance), 2009, FAC/Nossa Cidade, Dias de santos e heróis (infantil), Editora Prumo, 2009, Três contra um (infantil), Franco Editora, 2011, Nem tudo foi carnaval, (juvenil), Editora RHJ, 2012; Janaína, a bailarina (infantil), Franco Editora, 2012; O macuco Felício (infantil), Editora Cortez, 2014; e O vestido da condessa (infantil), Franco Editora, 2014, O indizível sentido do amor (romance), 2017, Editora Patuá. Participou de várias antologias de contos. Atualmente, ministra oficinas e palestras e escreve o seu próximo romance, que deverá ser publicado em 2019.
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Trecho de O indizível sentido do amor (pág. 109-112)
XXXIII
José nunca soube o quanto dona Rita tinha ficado desconsolada com a sua prisão. Receitaram-lhe chás e calmantes, mas ela não conseguiu mais dormir direito desde a invasão de sua casa. Mudou as fechaduras, providenciou um portão novo, com cadeado, pôs cacos de vidro no muro da entrada.
Os vizinhos, até mesmo os que moravam nas redondezas há décadas, no início da construção dos barracos, vieram perguntar – alguns movidos apenas pela curiosidade e outros pela maledicência – quem era afinal o bandido bem-educado que ela acolhera em sua casa e de quem vivia se gabando. Uns chegaram a comentar que Luís deveria ser um perigoso traficante de drogas, para ser preso daquele jeito, até com metralhadora, que trocava de nome e que andara por ali em anos anteriores; outros o acharam muito parecido com o retrato falado do suposto assassino de uma menina que tinha sido violentada e morta na Tijuca.
Ela não tinha conseguido entender o que Luís fizera de errado. Sabia que ele não possuía arma nenhuma, pois limpava o quarto diariamente, nos meses em que ele morou na pensão, e nunca vira nada suspeito. Duvidava, inclusive, que ele soubesse atirar. Tinha conhecido jagunços antes de sair do Nordeste e sabia muito bem como identificá-los. Com aquele jeito de bom rapaz, falando baixo e sempre pedindo por favor, assistindo à novela com ela todas as noites, ele não tinha o menor jeito de bandido.
Depois que Luís foi preso, dona Rita revirou o quarto várias vezes à procura de algo que o denunciasse. Não encontrou nada, à exceção de uma mala desgastada e de má qualidade, quatro calças desbotadas, uma delas com o fecho estragado e algumas camisas. Achou sua escova de dentes azul e ficou pensando como ele estaria se arranjando. Será que no lugar para onde o levaram eles forneciam escova? Havia também um dentifrício pela metade. Ela juntou a roupa, fez uma pequena trouxa para dar a um vizinho que estava desempregado. Os livros, que eram poucos, utilizou para acender o fogo de manhã no seu velho fogão a lenha, lustrado com cera e vermelhão, pois da última vez comprara um feixe de lenha meio verde, danada para não querer pegar fogo depressa.
Levantou as tábuas soltas do assoalho, mas não achou nada. Sobre o criado-mudo havia um vidro recém-aberto de uma loção, que ela guardou para dar ao Nino, seu afilhado, quando ele aparecesse para visita-la.
O estrago que os homens fizeram tinha sido grande, mas, como dona Rita conhecia muita gente, não foi difícil arranjar um estofador barateiro para arrumar o sofá, em troca de alguns pratos de sua gordurosa comida.
Sonhava com Luís quase todas as noites, pensou em ir à delegacia para ver se descobria o seu paradeiro. Lamentava demais não ter o endereço da família do rapaz, para contar à mãe dele o que tinha se passado.
Na primeira vez que o afilhado a visitou depois da prisão de Luís, ela pediu-lhe que tentasse descobrir para onde tinham levado o seu hóspede. Nino esteve em várias delegacias. Aconselhado por um delegado, foi ao prédio do DOPS, mas a resposta era invariavelmente a mesma: não havia notícia de ninguém com esse nome, na lista de presos não constava nenhum Luís ou Daniel. Ninguém sabia de nada.
Até que um dia ela se cansou das buscas, desiludida. Mas sempre se lembrava dele, quando encontrava algum homem cheirando a loção almiscarada. Onde estaria o seu menino, companheiro de novelas? O que tinham feito com ele? Será que bateram nele, machucaram-no? É certo que ela desconfiara desde o início que ele não era um simples consertador de enceradeiras, com as palavras bonitas que usava. Era um rapaz que tinha estudo, disso não duvidava. O que será que ele fazia naquela fábrica de subúrbio? Terrorista, inimigo do Brasil, como agora eles diziam no noticiário, sabia que ele não era.
Dona Rita só se acalmou mesmo quando o pai de santo do terreiro de umbanda lhe disse que não se preocupasse mais, pois Luís seria solto logo. Recomendou que todas as sextas-feiras ela usasse roupa inteiramente branca e oferecesse um prato de canjica grossa a Oxalá, que, segundo os médiuns da casa, era o santo de cabeça de Luís. Ela cumpriu a tarefa até a sua morte, dez anos depois daquela noite que a marcara para sempre.