Um trecho de romance de Sandra Godinho
Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. Publicou O Poder da Fé (2016), Olho a Olho com a Medusa (2017), Orelha Lavada, Infância Roubada (2018), agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019) e semifinalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (Escritor do ano 2019), O Verso do Reverso (2019), Prêmio de Melhor Conto Regional da Cidade de Manaus de 2019, Segredos e Mentiras (inédito), semifinalista no Prêmio Uirapuru 2019, Terra da Promissão (2019) e As Três Faces da Sombra (2020) e Tocaia do Norte (2020).
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Sinopse do romance Tocaia do Norte:
A história de Tocaia do Norte é baseada em fatos reais que aconteceram nos meses de outubro e novembro de 1968 no Amazonas e que tratam das circunstâncias misteriosas envolvendo o massacre da expedição do Padre Giovanni Calleri e a matança de quase 3000 índios Waimiris-Atroaris. Em Tocaia do Norte, o padre Chiarelli, pertencente à congregação Missionários da Consolata, foi escolhido pela Funai em 1968 para afastar os índios da área que os militares escolheram para construir a rodovia BR- 174, ligando Manaus a Boa Vista. O religioso, escolhido pelos governantes do Amazonas e Roraima, Funai e DNER para chefiar uma missão de pacificação, leva consigo o seminarista João de Deus, dado à igreja como paga de promessa por seus pais. Durante a expedição, desenreda-se uma trama de anseios políticos e econômicos, em que fica evidente o interesse da elite governante, dos militares do DER e da Funai regional para que o padre fosse sacrificado e assim justificar o massacre de milhares de índios moradores da área que atravancam as obras da estrada. João de Deus escapa do atentado, assim como Paulo Dias, o mateiro encarregado de guiar a expedição (arregimentado pelos militares para guiar a expedição para a armadilha fatal). Ao final da frustrada empreitada, Paulo Dias e João se Deus travam um embate de forças, em que não há ganhadores. Esse livro é também o resgate de uma história real que muitos querem ver esquecida.
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[…] Pai falava quase que só para ele. Eu me fiz forte, eu me fiz duro como a pedra de Pavela, não pulei na água. Pai falou para deixar de covardia. Ele não me entendia, não entendia como um menino de dez anos podia acordar na rede pela manhã e já ser invadido de oração, não entendia que essa era a verdadeira covardia, impingir a uma criança qualquer crença que não era a dela. Houve de minha parte um temor a esse Olho, mais que a Deus. Mesmo rezando o Santo Anjo com a mãe, ela pedindo proteção e eu pedindo perdição, querendo viver pelas ruas e rios respirando liberdade. A pescaria daquele dia acabou sugando minha disposição. Cansados, retornamos à cidade flutuante, ao nosso cativeiro com gosto de saudade. Ao atracar no píer, avistamos um vizinho gritando por ajuda, um zumbido ambulante com dois braços alvoroçados no ar, uma figura desconsolada, só então notamos o flutuante ardendo em chamas atrás dele. Tomamos um fiapo de fôlego e um susto. A ameaça era iminente. O incêndio podia consumir não só a morada de um vizinho, mas todas ao redor. Sem perder tempo, pai pulou para o trapiche, fez a amarração da canoa e saiu em busca dos baldes fazendo furdunço, clamando por mãos e boa vontade. Os moradores acudiram como possível, o que foi muito pouco. Vivíamos mesmo na corda bamba. Pior que isso, podíamos ser varridos do lugar por uma simples fagulha. Éramos menos que merda. […]
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