Um trecho de romance e ilustrações de Deborah Dornellas
Deborah Dornellas é uma carioca criada em Brasília, que atualmente vive em São Paulo. É escritora, jornalista, tradutora e aprendiz de artista plástica. Em 2001, concluiu o mestrado em História (UnB) com um trabalho sobre o maracatu nação pernambucano, o que a levou para dentro do universo da cultura popular brasileira de matriz africana, sua grande paixão. É também pós-graduada em Formação de Escritores (ISE-Vera Cruz-SP). Em 2012, publicou Triz (In House), uma reunião de poemas. Integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro desde 2013 e participou de todas as publicações do grupo. Cruzou o Atlântico pela primeira vez em 2016, para ver Angola de perto e alimentar-se de histórias. Por cima do mar (Patuá, 2018) é seu primeiro romance, com ilustrações também de sua autoria. A sinopse e o processo de gênese do livro seguem abaixo. Email: ddornellas13@gmail.com.
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SINOPSE
Lígia Brasil é uma mulher negra, brasiliense, historiadora, que vive em Angola. Aproveitando uma pausa compulsória em suas atividades, decide reunir num texto algumas de suas lembranças. Enquanto escreve, vai costurando e editando suas memórias, remotas e recentes, num movimento de vaivém que atravessa o oceano e o tempo. Constrói pontes entre sua infância e juventude pobres na Ceilândia, periferia de Brasília, e sua vida atual na cidade de Benguela; entre a ancestralidade africana e a identidade brasileira.
COMO SURGIU A IDEIA DO ROMANCE?
Em 2013, Tenório Telles, escritor, poeta e editor amazonense, leu alguns contos meus, que eu tinha enviado a ele aqueles dias, para leitura crítica. Éramos colegas na pós-graduação em Formação de Escritores do ISE-Vera Cruz (SP) e sempre trocávamos figurinhas nos intervalos das aulas. No meio de uma das nossas conversas, Tenório comentou que um dos meus contos tinha chamado sua atenção. Vitalina era o título provisório: “Esse conto é o germe de um romance. A Vitalina é uma heroína brasileira”, me disse. Fiquei surpresa. Não imaginava que a personagem tinha essa potência. E nem sequer pensava em escrever prosa longa na época. Mesmo assim, a sugestão de Tenório não me saiu da cabeça. Algum tempo e muitas noites insones depois, acabei decidindo encarar a empreitada.
Meu projeto para a conclusão da pós seria um livro de contos, que já estava bem adiantado. Deixei-o de lado e mergulhei no romance, de que eu só tinha o mote e a protagonista. Comecei a escrever cenas esparsas, fragmentadas, sem saber no que ia dar. Em novembro de 2016, consegui finalmente viajar para Angola, onde conheci alguns dos cenários da história que nascia. Continuei escrevendo cenas soltas até quase o final do processo de escrita, em 2018, e só consegui montar o quebra-cabeça e chegar a uma primeira versão em 2017. Editei essa versão uma meia dúzia de vezes até ficar razoavelmente satisfeita. Depois, já durante o processo de diagramação do livro, mergulhei nas ilustrações, todas pensadas para dialogar com cenas da história. Foi Vitalina, que logo ganhou Lígia, quem me puxou pela mão.
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POR CIMA DO MAR (TRECHO)
Entrei em silêncio. As duas mulheres estavam na cozinha. Mamãe ouviu meus passos na sala. Vita? Sou eu, mãe. Túlio e Luzia, hipnotizados diante da TV. Fui direto para o banheiro, me tranquei, abri a torneira quente do chuveiro e deixei a água correr. Joguei o casaco num canto. Comecei a tirar a camiseta suja. Minhas costas deviam estar em carne viva, porque o atrito com o tecido foi quase insuportável. Com muito custo consegui tirar. Levantei os olhos e me assustei com a minha imagem no espelho estreito do armarinho. Rosto, pescoço, parte do colo, ombros. As alças do sutiã torcidas. Um hematoma no supercílio esquerdo. O vapor d’água começava a embaçar a superfície lisa. Limpei um trecho e me apoiei no espelho. As duas palmas abertas. Enxerguei os sulcos e as linhas nas palmas claras. As solas dos meus pés também são claras. Sou escura. Sou de quantas cores? Misturada como bolo formigueiro. Senti uma dormência nas pernas e nos quadris, e minha imagem foi se consumindo aos poucos, as mãos espalmadas deixando um rastro no espelho. Então a visão escureceu. Minha próxima lembrança é de ouvir um ruído insistente de batida na madeira. E o som de uma voz, vinda de algum lugar remoto que não conseguia distinguir. Aos poucos identifiquei a voz da minha mãe, fia, o que aconteceu? Abre a porta, Vita! Ai, minha Nossa Senhora! Acode aqui, Maria! Mais pancadas. Recobrando os sentidos, tentei responder, mas minha voz saiu sufocada. Queria me levantar, mas senti que não ia conseguir sustentar o peso do meu corpo. Meus braços doíam muito. Reparei que tinha um machucado num dos cotovelos. Os joelhos ardiam, e eu não conseguia me apoiar neles para me erguer. Girei o corpo e por pouco não batia a cabeça no vaso sanitário. Deitei no chão de novo, a face esquerda encostada na umidade malcheirosa. Mijo velho, mofo e desinfetante. Tia Maria começou a bater na porta. Bater, não, espancar. Vita, deixa disso, menina, abre essa porta! Senão eu chamo alguém pra arrombar. A palavra me despertou. Tornei a me dar conta do que tinha acontecido na saída da UnB. Engasguei. Não me lembrava direito como tinha conseguido chegar em casa, andar de ônibus naquele estado, do Plano até a Ceilândia, caminhar da parada até a nossa rua. Veio a imagem do homem, o senhor branco, o professor que tinha me ajudado. Vieram as imagens horríveis do ataque, as figuras dos caras, a dor me rasgando, as merdas que me diziam. Queria berrar, chorar, desaparecer. Foi estudar, nega safada? Eu sei o que você quer, nega nojenta. As duas mulheres pararam de gritar e bater na porta. Imaginei que tivessem saído para buscar ajuda. Entrei em pânico. Não queria que ninguém me visse naquele estado, de jeito nenhum, de jeito nenhum. Foi quando ouvi a voz de Túlio. Ele e tia Maria falavam alto, embolando as palavras. Deduzi que os dois se preparavam para derrubar a porta do banheiro. Não! Do fundo do meu torpor, saiu um ruído mais grave do que a minha voz, já vou sair, tia, me distraí aqui. Vou terminar o banho e já saio. Ouvi de novo a voz da minha mãe, ai, que susto, fia! Pensei que ocê tinha desmaiado. Mania de tomar banho com água pelando que essa menina tem, sô. Olha a fumaça saindo por debaixo da porta. Era tia Maria. A muito custo, usando toda a força que me restava, levantei do chão, baixei a tampa da privada e me sentei. Descalcei o tênis e as meias suadas. Com cuidado, levantei os quadris um pouco para tirar a calça jeans, uma perna, depois a outra. O sangue seco nos joelhos estava grudado na calça. Doeu muito desgrudar. O que eu ia dizer pra minha mãe? Comecei a pensar numa história para contar a ela, tia Maria, Túlio, Luzia. Mas a visão da mancha de sangue na calcinha me interrompeu o pensamento. Foi como um soco no estômago. Senti uma tontura súbita e quase desmaiei outra vez. Respirei fundo, uma, duas, três vezes, e o mal-estar diminuiu um pouco. Vou esconder essa roupa. Depois toco fogo. Ninguém vai ver. Ninguém vai ver. Estiquei o corpo até o chuveiro, temperei a água e entrei debaixo da ducha morna. Minhas costas arderam a ponto de quase me fazer gritar. Engoli o grito. Peguei o sabonete e passei nas mãos, nos braços, na barriga, entre as pernas, na vulva. Me lavei inteira. Tudo ardia. Dentro e fora. Despejei o xampu na concha da mão e lavei a cabeça como pude. Meu cabelo estava embaraçado, com cascalho, poeira e fiapos de capim enroscados nos fios. Deixei a água carregar tudo. Enxaguei junto com as lágrimas. Fiquei um tempo sob a ducha, observando a água suja indo embora pelo sumidouro do ralo. Saí do banheiro enrolada na toalha, segurando as roupas e o tênis num bolo. Fui até o quarto e tranquei a porta. Ninguém me viu sair do banheiro, ainda bem. Enxuguei o corpo com cuidado, me vesti devagar. Calcinha limpa, pijama velho e macio, de mangas e calça compridas. Uma tontura me fez sentar na cama por um tempo. Precisava respirar. Mas sabia que tinha de sair do quarto antes que viessem me chamar. Coloquei a roupa imunda dentro de um saco plástico e joguei debaixo da cama. Amanhã cedo eu queimo, sem ninguém ver. O tênis, eu jogo fora. Saí do quarto. Na sala, vi que Túlio já estava de novo na frente da TV. Ele e Luzia discutiam, como sempre, sobre de quem era a vez de escolher o canal. Mamãe e tia Maria lidavam na cozinha, porque a janta da família é sagrada, uai.