Um trecho de romance e quatro poemas de Sonia Bischain
Sonia Bischain é escritora, design e fotógrafa, autora dos livros Rua de trás (poemas), Nem tudo é silêncio, Vale dos atalhos,Viandante, labirintos entressonhos (romances). Coautora do livro de fotografias Cultura daqui, olhares da Brasa, com Avelino Regicida e Enver Padovezzi. É uma das organizadoras do Sarau da Brasa, desde seu início, em 2008, com um trabalho voltado para a literatura, em bibliotecas e escolas públicas da região do Distrito de Brasilândia, periferia de São Paulo. Participou com poemas em diversas antologias e também em eventos literários no Brasil, França, Cuba, Chile, Paraguai e Argentina.
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Trecho do romance Viandante, labirintos entressonhos
O dia pensava em clarear e lá estava ela, sentada naquela cadeira, próxima à vidraça, num quarto de hospital, ouvindo aquela música mágica — alguém na vizinhança passara a noite a ouvir belas canções… Olhou para a mãe, que também a olhava. Silêncio entre elas. O silêncio é perseverante e esperava amedrontador. O coração parecia querer fugir do peito em desenfreada corrida. Labirintos. Surdas correntes.
“E a gente já tão sem assunto. Não sobrou nada, nem palavras. Tudo já foi dito” — concluiu.
Para o horizonte, a mãe dirigiu um vazio olhar. Era como se estivesse em outro tempo, futuro ou passado, um tempo que não é.
Amy chamou pela mãe.
Por um instante, ao olhá-la, pode perceber a sua coragem. Seu olhar denunciou o que trazia dentro de si, não era tristeza, o semblante da mãe revelava uma serena aceitação.
Naquela ala do hospital, dava para sentir a morte a disputar corpos cansados e almas desiludidas. Úlceras abertas, cicatrizes, a arrancar-lhes das mãos o destino.
Chamou novamente pela mãe. Nenhuma resposta. O silêncio da voz é a liberdade da alma.
Uma oração lhe veio à mente, poderosa, mística, mítica, como uma prece antiga vinda dos primórdios das religiões a lhe confortar o coração e a acalmar a sua dor: Cordeiro que tira os pecados do mundo, tem compaixão de nós.
“Eu nunca consegui dizer a ela o quanto a amo. Oh, meu Deus! O corpo dela está tão leve!”.
*
QUE NÃO SEJA TARDE!
Haveremos de emudecer
o pranto, a dor, a angústia.
Haveremos de sair da penumbra,
das ruínas, das prisões.
Haveremos de arrancar as grades
escancarar janelas, portas
e saudar os raios de sol.
Haveremos de cruzar
as fronteiras da esperança
e enxergar a realidade sem culpas,
sem sombras, sem mentiras.
Haveremos de evocar,
decorar, gritar
os nomes dos injustiçados
guardados em nossa memória.
Haveremos de enfrentar
o medo, a angústia,
de quebrar as algemas,
de transpor as portas das tormentas,
de reviver todas as faces da rebeldia.
Haveremos de reaprender
a lutar, a voar
e transbordar de sonhos nossos dias.
*
INDIVISÍVEL
Como se fôssemos parte de tudo:
o visível e o invisível;
o compreensível e o inexplicável,
como elemento único, universal.
Como se o risco de perder o futuro
atemorizasse a todos
e cada árvore derrubada,
cada rio poluído,
cada animal extinto
se tornasse angústia em nós,
como se fôssemos um.
Como se a Terra fosse um todo:
água, mato, pedra, animais e gente
e cada gente fosse uma só pessoa
e cada pessoa fosse a Terra.
Como se as lágrimas de uma mulher
fossem choradas por todas elas.
Como se o chão duro;
o frio cortante das madrugadas
dos moradores de rua
nos dilacerasse a carne,
nos magoasse a alma.
como se fôssemos um.
Como se nos humilhasse
o tapa na cara
e machucasse em cada um
os pés calejados de andar descalços
e em todos os estômagos
doesse a dor da fome.
Como se meninas e meninos abandonados
fossem filhas e filhos de todas as mães.
Como se velhos solitários
fossem avôs e avós de todos nós.
Como se não existissem minorias,
preconceitos,racismo
e tantas outras tolices,
e fossemos de fato gente,
respeitados em nossos direitos.
Como se cada riso
movesse todos os lábios,
como se os olhares tivessem todos
o mesmo brilho afortunado,
como se os corações transbordassem de esperança
e aprendêssemos todos a estender as mãos,
assim, como se fôssemos um.
*
AMNÉSIA
Ah, se eu tivesse memória!
Contaria, quem sabe, a tua história.
Se eu tivesse memória,
talvez também a minha.
Meu silêncio e o teu
frutos de nossa ignorância.
Ignorância, castigo maior,
esperança morta,
subtraído destino.
Como segredo
me é negada a história.
Ah, se eu tivesse memória,
nada no pensamento seria calmo.
Justiça no mundo é lenta,
lembro e esqueço
que por mim passou um dia.
Traição desmedida,
desgraça premeditada,
inflamada cobiça.
Como foi ainda está
a reinventar o inferno na Terra.
Obstáculos, abismos,
sucessivas humilhações,
multidões de famintos,
legiões de esfarrapados.
Passado encerrado
no tempo silencioso.
Ah, se eu tivesse memória!
Como condenados
multiplicam-se os miseráveis,
heróis derrotados,
destino ausente,
desigualdade.
Procuro a direção do sol.
Quem me salvará?
Quem pra me tirar dos sonhos?
Neste chão maldito e bendito,
ah, se eu tivesse memória!
Eu contaria a tua história,
quem sabe também a minha?
Mas memória me foi negada
tudo que me vendem
são histórias inventadas.
*
DOUTORES DAS LEIS
E vieram carregando seus deuses,
em suas costas arqueadas pelo peso de suas leis.
Vieram carregando pecados e orações,
que pudessem livrá-los de suas culpas.