Uma crônica de Alexandre Benegas
Alexandre Benegas é professor e coautor das obras Antologias Literárias e Escritos Memoráveis. Além de ter publicado vários artigos didáticos e ficcionais sobre Língua Portuguesa, contribui com seus escritos na coluna Opinião, do Jornal da Cidade. É Doutor Honoris Causa em Literatura pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos e membro da Academia Bauruense de Letras. Como reconhecimento de seu trabalho literário, já recebeu prêmios e honrarias nacionais: Caneta de Ouro promovido pela FEBACLA, Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Arte, além do título de Comendador da Literatura e Cultura Brasileira pela Assembleia Legislativa de São Paulo.
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Sons do silêncio
Havia um tempo em que se estudava, com afinco, o conteúdo das letras musicais nas aulas redacionais. Propostas temáticas, tipologias textuais, normas, níveis, vícios e figuras de linguagem. A emotividade, a narratividade, a criticidade na construção argumentativa. Na gramática aplicada ao texto, o pretérito imperfeito em Elis Regina: ‘Agora eu era herói e meu cavalo só falava inglês.’
A metáfora em Gilberto Gil: ‘Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera ser o verão o apogeu da primavera.’ A Hipérbole em Cântico Negro, de José Régio: ‘Não nasci, eu rasguei o ventre de minha mãe.’ A aula de História em Chico Buarque e Francis Hime: ‘Seus filhos, erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais.”
Agora, vivo num tempo de narrativas curtas, de orações subordinadas, de artigos indefinidos, de substantivos comuns e perceptivelmente abstratos. Vivo num tempo de verbos defectivos, de períodos longos, logrados propositadamente à ambiguidade, ao hiato das reticências. Confesso-lhe, isso tudo me assusta. O rigorismo gramatical me adverte: ”Eu sou’, verbo no singular, em concordância com o sujeito. Meus pensamentos, grande parte perturbadores, gritam para mim: ‘Eu somos.’ O eu gramatical duela com eu psicológico. Igualmente um disco, meus eus vibram em rotações. Musicadas, cada uma com sua letra, cada qual com sua partitura. Como equilibrá-los?
Esperançoso, visito passado musical. Sol inexiste na banca de revista. Com preguiça, muitos ainda leem não notícias. Os tempos são outros. Sem lenço, sem documento. Nada nos bolsos, celular na mão. Laissez-faire! Compreensível ficarmos assim. Os ruídos da ganância desmedida, somado ao ensurdecedor narcisismo irrefreável tocam alto. Desafinados, elegemos a intolerância como melodia. Dó? Nota musical. E na toada, desaprendemos a ouvir a musicalidade dos relacionamentos. Pudera! Somos uma legião letrada que reunida, forma uma geração de analfabetos emocionais.
Negligenciamos o canto de um ‘obrigado’. Ocultamos a vocalismo de um ‘por favor’. Subestimamos a cantiga do ‘com licença’. Desnecessário alterar a inflexão da voz, até porque para a verdade, inexiste plateia, público, espetáculo. Rubem Alves tinha razão. Necessário um concerto para o corpo e para a alma.
Enquanto finalizo essa antilinguagem, esse surdo raciocínio, sinto-me, como Mia Couto, um afinador de silêncios, Sim, no plural, pois é no silêncio que se fecundam pensamentos. É no silêncio que a memória, vocacionada a colecionar desnecessidades, engolfa-se no passado. É no silêncio que o corpo, substantivo, basta como adjetivo. É no silêncio que a separação silábica ocorre em ditongos e hiatos. É no silêncio que colecionamos falas descongestionadas.
É no silêncio que abortamos mentiras sinceras, ressuscitadas no sétimo dia. É no silêncio que renovo minhas promessas e reconheço minhas vertigens. É no silêncio que hospedamos esperas. Continua sendo no silêncio que sentamos na cama, com a noção exata de reconhecer que somos a beirada. E nesse silêncio, clamo ao Criador: Bem-aventurados os sonhadores.