Uma crônica de Douglas Felipe
Douglas Felipe é natural de São Paulo e autor do romance autopublicado O Gabarito (2017).
Instagram: @thouglas
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Prédio dos Escritores
“Anjo eu sei que tu está Embucetado
hoje então comprei, umas coisas que sempre me faz se
sentir bem.
E uma pessoa Incrível que nem ti merece
divide com o povo aí.
Tô correndo porque peguei a caneta de um
Estranho.”
Houve um tempo em que a violência quebrou o silêncio ao redor da gente. Quando era pequeno, vi meu avô jogar pratos e copos em minha tia grávida. Passou a vida tentando compensar com outras barbaridades, ele não conseguia evitar.
Esse tipo de terror me perseguiu por muitos anos. Meu pai jogou meu irmão pequeno em cima da minha mãe na hora da briga; ficamos em choque: assaltaram a casa dos vizinhos, eles estavam assaltando as casas como se estivessem de portas abertas, desprendiam as tevês das paredes e arrastavam as máquinas de lavar. Só não entravam em quintal com cachorro. Arrumamos duas três quatro bem grandes que quase se mataram no dente, eu as segurei pelas coleiras e fui mordido, mas era amor forte, eu tinha coragem de pegar nelas enquanto tentavam se matar. A Pucca fugiu velha e foi agredida na rua cega morreu eu sabia que ia morrer mas a abracei ensanguentada e disse eu te encontrei a gente a deixou ir embora mas a culpa nunca deixou meu coração. Perdemos tantos cachorros! Nunca fiquei mais forte com isso. Sempre choro como se não houvesse amanhã.
Visitado por essas pequenas violências, entendi: eu levo os problemas do trabalho pra casa e acho tolo quem não leva, porque não fui criado pra ser respondão e nem você. A gente foi criado pra ficar de bico calado. Boas companhias; viadinhos, mas boas companhias. A gente queria que nossa bondade revertesse as pessoas na hora do preconceito e elas nos defendessem, mas não adiantou: sua mãe te disse que era culpa sua e a minha não disse nada. Depois, os chefes não entendem por que a gente chora quando um cliente grita. Senhor, eu sou gay e eu adoraria que essa não fosse toda a minha história, às vezes é sim.
Você é otimista e eu tenho medo de sair de casa.
Disseram que você estava errado e você sorriu, se fosse eu tinha dado um soco na minha própria boca. Saio de louca, mas não sem deixar uma impressão. Não faz tanto tempo assim, peguei uma foto, tinha eu a Carol e bebê Manu. Naquele natal, a casa do Zé foi assaltada e a gente passou dias com medo de alguém tentar entrar na nossa. Eu dormia à tarde e trabalhava de madrugada, o hotel também foi assaltado na minha folga era deus tentando me dizer meu filho sua vez tá chegando até hoje acordo com qualquer barulhinho achando que é bandido pulando o muro pro quintal a única cachorra que sobrou late e tenho que escolher se vou correndo ver ou se fico e imagino: as duas escolhas parecem as erradas dos personagens de filmes de terror. Peguei outras fotos e também o laço dentro delas. Tem foto de quando uma cobra subiu na gaiola do canário do vizinho Zé e o comeu. O laço do Zé com os meus pais é mágico! É o que os salva. Eu pensei: o laço é o que nos salva dos medos. Agora, ao invés de ficar com medo de bandido, penso nesses laços, eles são invencíveis. Nem sempre tenho força pra não ter medo, demora um tempo, mas olha esses laços!
A carta que você me escreveu é de ferro, é um escudo. Se a gente não der certo como você acha, até você ter 28 anos como eu tenho agora, esse escudo continuará de ferro, que armadura não se destrói tão fácil como se constrói não, isso eu já vi, os laços assalto nenhum destrói. Dançar com bebê no colo, ver elu se divertir, a dor nos braços depois, isso é invencível. Esse poder só a doença de Alzheimer pode destruir e pro seu azar o gene corre na minha família, mas sempre tem um pra preservar a memória por tempo suficiente pra passar pros outros. Eu sou escritor, você sabe onde se meteu. Vou escrever sobre você também e não deixar os outros esquecerem que essa bicha já foi problema de muita gente. E foi problema seu também.
Teimosa que só o diabo.
Antes, eu era burra. Tomava dois minutos de sol na cara por dia e achava que era feliz! Andava do ponto de ônibus até o trabalho e tinha medo da poluição da cidade deixar meu rosto feio, por isso sempre usei vários cosméticos na cara, esquecendo do resto do corpo. Escondida debaixo dos pelos tem uma verruga, você já tocou, mas talvez não tenha sentido. Quero te mostrar antes que eu mesmo esqueça. Mas que caralho é né a gente quer contar as histórias dos cus para as pessoas e vê-las rirem da vez em que esquecemos de fazer a chuca!
Talvez essas histórias não tenham sido contadas o suficiente.
Ou os amigos gostem de ouvi-las.
Talvez, também façam parte dos laços.
Se sim, também são invencíveis.
Eu gostaria de continuar sendo problema seu. Mas agora tenho um grandão pra resolver, maior do que nós:
A literatura.
A literatura parece um prédio.
Eu fico na calçada. Os escritores entram e saem e às vezes um é gentil e fala comigo, lê meu livro, mas nunca me convidam pra entrar.
Deixo de tomar sol pra ficar na sombra desse prédio. Mas que bosta de vantagem seria entrar, no fim das contas? Não conheci gente que também escreve nas calçadas? Nunca morei em cobertura na vida, por que teria chances de morar na cobertura da literatura? Se é calçava na vida, é calçada na literatura também. E se eu fosse um alferes sem o espelho? Nunca me vi inteiro em lugar nenhum, estou sempre procurando. Eu sou o espelho: prometo teorizar, mas tudo que apresento é um axioma.
Mas eu gostaria de continuar sendo problema seu.
E eu me vi nessa carta. Me desfazer dela é um jamais, nunca. As violências não passam por esse amuleto e pelos chocolates que não dividi com ninguém. Ela me protege. Tenho medo de usá-la para invadir o prédio dos escritores.
Sandra Modesto
Adorei a Crônica. Muito forte e envolvente demais. Parabéns ao autor. Por me deixar levar pelas palavras.
Douglas Felipe
Sandra, obrigado pela leitura e pelo comentário.
Endrigo Nascimento
Gostei, interessante cada parágrafo. Parabéns pela obra!