Uma crônica de Felippy Damian
Felippy Damian, cineasta bissexto, acredita que o cinema é uma cachaça, que uma caneta pode ser uma espada, que Maradona é melhor que Pelé e que há uma beleza triste em ter nascido no lugar mais distante do mar neste continente latino.
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Catraca, cachorro-caçador, gostosas e apocalipse
Cuiabá, Recife e João Pessoa.
Toca Belchior na janela do avião. Do meu lado um cara está no celular. Quer pagar quinhentos reais no cachorro-caçador. Dois guris pulam a catraca. Aqui não se fala guri. Agora o sujeito quer comprar um carro. Dois policiais entram pela porta de trás do ônibus. Ouço as alfaias da Nação Zumbi. Logo também ouço a voz do Chico, ou seria do Lampião? Quando degolaram minha cabeça, passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo. O carro é de um primo que mora no interior. Sete mil reais. Eu vejo a minha sombra se esticar na areia e tenho vontade de contar pra alguém. O guri tem um cabelo chavoso e paga ao policial o valor da passagem. Queria ver se fosse o filho do Eduardo Campos. O prefeito não anda de ônibus. Uma santa sobe a ladeira. Uma bruxa desce. A Monalisa desce também, só que até o chão. De novo tenho vontade de contar pra alguém. As gostosas são contra o Bolsonaro. O cara não é caçador, não é motorista, mas tem quinhentos reais e quer ficar com o carro. A polícia já desceu. Uma menina de pele preta, sentada atrás de mim, começa a cantar um hino. Eu passei parte da minha vida tocando música gospel. Ela desafina. Desafina e chora. Já está no refrão e eu reconheço. Sai, sai da minha frente, hoje eu vou dar trabalho numa onda diferente. Quando eu chego na praia, nos meus ouvidos tocam Belchior, Nação Zumbi e Ludmilla. Vai tudo ficando baixinho na medida que o som do mar vai subindo com a maré. Eu ainda escuto esse som quando vejo duas meninas se abraçarem com um desespero de apocalipse na porta do embarque. Também escuto quando vejo a Isadora, uma menina de quinze meses, que parece guardar dentro do seu corpinho toda a energia de um big bang. De novo tenho vontade de contar pra alguém.