Uma crônica de Krishna Monteiro
Krishna Monteiro nasceu em 1973, no Paraná. Graduou-se em economia e fez mestrado em ciências políticas. Depois de uma breve passagem pelo jornalismo, em 2008, ingressou na carreira diplomática. Em 2015, estreou como escritor com o livro O que não existe mais (Tordesilhas Livros), que será lançado na França e Romênia e foi finalista do Prêmio Jabuti – 2016, na categoria Contos e Crônicas. Participou da edição de 2016 da Primavera Literária Brasileira, em Paris, e possui contos publicados em inglês e espanhol. Seu segundo livro e primeiro romance, O mal de Lázaro, foi lançado em fevereiro deste ano, pela Tordesilhas Livros.
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Em algum lugar, um livro
Em algum lugar, existe um livro. Ele contém centenas de histórias e personagens confluindo para uma única história, e eu o leio em voz alta, todas as noites, admirado de sua grossura e peso. Deixo-me levar a tal ponto pelo livro que esqueço que se trata de algo construído, escrito; pois, antes que me dê conta, já vivo sua história como se fosse a minha. Ele sempre me encanta pela escala de compreensão da alma por parte daquele que o escreveu, a ponto de criar tantos e distintos personagens. E o sigo lendo, página por página, e pensando, triste: “Por mais que me esforce, nunca serei capaz de escrever algo que chegue a ser uma sombra deste livro”. O livro também me assusta, e da mesma maneira, todas as noites, no momento em que ouço alguém virar-se ao meu lado na cama e sinto uma mão que não é a minha soltar-se do interior da minha; em que percebo – tocando minhas costas – um vento frio deslocado pela porta que acaba de se abrir; alguém caminhando a passos leves até o banheiro, tentando me proteger da luz acesa. Nesse instante me vem a revelação, a consciência súbita: este livro é meu; ele me pertence. E o estou escrevendo ao longo de mais de trinta anos, numa mesma mesa de biblioteca visitada todas as noites, a ponto de conhecer em detalhes todos os móveis ao redor da área em que sempre me sento: como as estantes, a poltrona gasta de couro vermelho onde às vezes, cansado da leitura, durmo com o livro no colo, repousando dentro de meu próprio sono, inserindo sono dentro de sono como matrioshkas russas alojadas uma no interior da outra (no livro, há uma história sobre matrioshkas).
Mas algo ocorre: lá em cima, na superfície desses sonos contendo sonos, a mesma luz acesa há pouco já começa a me tragar para o alto. A poltrona e a mesa da biblioteca iniciam sua costumeira dissolução – juntamente com o livro – de todas as noites, fugindo ao meu alcance. E quando acordo ainda me resta, às vezes, a sombra de algum parágrafo, ou frase, que repito e repito até me esquecer também. Até que do livro e de suas histórias sobrem, quando muito, uma palavra; uma letra; ou nem isso. Até que o livro seja apenas o reflexo de um reflexo, a lembrança da lembrança de uma viagem ao interior de uma biblioteca, todas as noites, curvado sobre uma mesa, ou sentado numa poltrona vermelha e gasta.
Acordo. Alguém pede desculpas por ter acendido a luz. Às vezes, como hoje, levanto-me às pressas; rabisco alguma coisa no papel. Mas já são cinco da manhã. Resta uma hora até o trabalho. Por volta do meio-dia já terei me esquecido inteiramente dele, livro. Na noite do dia seguinte, ele outra vez se materializará e dissolverá em minhas mãos. E ao acordar, terei a impressão de que a minha verdadeira vida, desde a infância, transcorre somente quando o abro, leio e escrevo. E o perco.