Uma crônica de Luiz Renato Souza Pinto
Luiz Renato Souza Pinto lançou, em 1998, o romance Matrinchã do Teles Pires, que trata da colonização do norte do Mato Grosso ao longo dos anos setenta, durante a ditadura militar. Em 2014, veio Flor do ingá, desdobrando a aventura e apresentando o cotidiano de um casal que se conhece em Londrina, Paraná e vem para o Mato Grosso, quando então se separam. Em 2018, Xibio completa a trilogia, destacando a vinda de nordestinos para garimpos de diamante em Mato Grosso e Goiás. O autor também publicou Duplo sentido (crônicas), em 2016, em parceria com o pernambucano Carlos Barros e Gênero, número, graal (poemas) em 2017, ganhador do II Prêmio Mato Grosso de Literatura.
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Cuiabrasilidades
Esta crônica pretende falar de incômodos sociais; aquelas situações que ocorrem nas ruas, nas casas, no mundo, e que muitas vezes vão para o bueiro, para baixo dos tapetes, para o lixão. Quero abordar dois livros que me atravessaram e sobre os quais não escreveria, não fosse por uma junção improvável que os trouxe aos meus olhos leitores no dia de hoje: O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler, e Passagem estreita, de Divanize Carbonieri. “Refletir acerca da violência que atravessa as cidades, é, assim, fundamental quando se trata da questão urbana neste fim-de-século, e vem sendo amplamente trabalhada pela ficção brasileira contemporânea” (GIASSONE, 1999, p. 32).
A citação acima é do século passado, mas nem por isso se considera defasada; pelo contrário, atualiza o problema na terceira década deste milênio em que vivemos. É com esse olhar de desconforto que sigo a trilha aberta a ferro e fogo pelas obras referidas. Penso que para os dois livros há um eixo sobre o qual se define nossa existência:
A vida, esta passagem estreita, autofágica. Coleção de ausências. Eu, este quarto semiesvaziado. Travando na garganta as faltas. Esfregando a carnes sem calor. Absorvendo o derredor desabitado que confunde e desampara. E a solidão desaforada que insinua crenças em visões de eternidade. Limpando, polindo, guardando moedas. Que a paga de Caronte precisa estar sempre pronta (KRIEMLER, 2020, p. 67).
O uso do gerúndio à espera da morte prolonga o sofrimento anunciado. E a demora de Caronte faz com que o inferno se prolongue no aqui e agora. Não que estejamos diante de camelos a passar pelo buraco da agulha, mas de humanos invisíveis nos despojos da cidade. “Enquanto come sua ração diária, Fia fica com os olhos parados, injetados, parece que reflete sobre algo” (CARBONIERI, 2019, p. 19). As colagens que apresento são fragmentos de contos cujos títulos, intencionalmente, omito para oferecer outras possibilidades de significação. Para fora de uma sequencialidade de autoria única.
Há ligações intencionais, há pontos de transição. “Ela vai explodir as pontes. Eventualmente. Mas, por ora, as pontes estão intactas. Separando o que ela se tornou do que ela foi” (KRIEMLER, 2020, p. 80). O espaço se movimenta do público ao privado, da casa para as ruas. “Assim, a própria rua pode ser vista e manipulada como se fosse um prolongamento ou parte da casa, ao passo que zonas de uma casa podem ser percebidas em certas situações como parte da rua” (DA MATTA, 1997, p. 98).
O risco de uma análise literária invadir o espaço da filosofia é iminente. “A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de universo ou afectos e perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos (DELEUZE; GUATARRI, 201, p. 44). “Deitada no fundo da canoa, entrevia o nuançado cambiante do firmamento enquanto fechava e abria os olhos” (CARBONIERI, 2019, p. 21).
Os caminhos que levam de uma a outra obra são tortuosos, obtusos. “São machos os atalhos. Fêmea é a trilha” (KRIEMLER, 2020, p. 113). De um a outro cenário, a similitude das personagens se constitui como ordenamentos de um cotidiano atravessado pela indiferença, pela exclusão, pela violência até mesmo pueril. “As travessias de novos limiares tanto podem acontecer na vida externa como na vida interna. Com mais frequência acontecem em ambas. Mas, sejam desafios externos ou internos, são sempre passagens para patamares ainda não trilhados” (DEL PICCHIA; BALIERO, 2010, p. 49).
“Tinham me designado para realizar mais uma travessia” (CARBONIERI, 2019, p. 31). As idas e vindas das personagens, das narrativas, das obras, das autoras, dão certo dinamismo para os tristes quadros das ruas em Brasília, Cuiabá, Rio de Janeiro, São Paulo. “Ela pensa que dormir de graça com o menino da escola será melhor que com o bêbado arranjado pela mãe. Não sabe que ambos vão marcá-la com a desgraça. Que tudo é atalho conduzindo aos mesmos vícios” (KRIEMLER, 2020, p. 123).
Corpos que se deslocam pelo espaço. Mulheres de palavras ou de carne. “Um corpo que parece errado de qualquer modo, quase uma monstruosidade” (CARBONIERI, 2019, p. 39). A história de muitas vidas. De avós, de mães, filhas e netas. “A casa da avó, onde ela está a salvo de tudo. De tudo. Até da vida” (KRIEMLER, 2020, p. 124). O preço a ser pago por nascer mulher. “ELA tinha sido VENDIDA pela mãe para trabalhar naquela casa” (CARBONIERI, 2019, p. 43).
Não tenho condição alguma de estabelecer juízo de valor sobre as obras. Faça por você, ou deixe que alguém venha a induzir: compre, leia, reflita! Faça sua escolha: o atalho dos prefácios, das resenhas, ou a trilha da curiosidade e da primeira impressão; ao menos para ver se é ela mesmo a que fica.
Referências
CARBONIERI, Divanize. Passagem estreita. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2019.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DEL PICCHIA, Beatriz; BALIEIRO, Cristina. O feminino e o sagrado. Mulheres na jornada do Herói. 2. ed. São Paulo: Ágora, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é a filosofia. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
GIASSONE, Ana Cláudia. São Miguel e o dragão. Cidade e violência em O Matador, de patrícia Melo. In: A poética das cidades. Luisa Lobo e Márcia Gonçalves S. Faria (orgs.). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.
KRIEMLER, Cinthia. O sêmen do rinoceronte branco. São Paulo: Patuá, 2020.