Uma escritura híbrida de Dennis Radünz
Dennis Radünz vive na Ilha de Santa Catarina (Florianópolis). Publicou os livros de poemas Ossama: último livro (2016 e 2018), Extraviário (2006), Livro de Mercúrio (2001) e Exeus (1996 e 1998) e o de crônicas Cidades marinhas: solidões moradas (2009). “Além, logo, lentamente” – híbrido de autoficção e documentário – integra 88.010-500: crônicas do mundo extrafísico, série de audiovisuais que iniciou com “Ilha do Carvão”, de Radünz e Fábio Brüggemann. Clique aqui para acessá-la.
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Além, logo, lentamente
Não foi atrás do embrião do autorretrato, nem foi pela certidão de um nome vago que eu atravessei a terra dos meus antepassados. Cheguei ao umbilical da cidadela sem me inteirar de onde iria, ou do que havia antes da nascença, e me fiz sozinho, devagar, porque sabia que a Barra do Rio Cerro – tão remota – agora guarda os meus Radünz desconhecidos. Não vou dizer que me percorri, voltando a nêurula, a gástrula, blástula e mórula até o óvulo e o sêmen a caminho do meu avô, porque isso seria estranhamente lírico. Somente digo que vim de ônibus e então desci e reconheci, andando, a cruz da São Sebastião que me chegou aos poucos.
Foi quando, na igreja, a imensidão rugiu. Berrou. Mugiu. Bicho paleontológico, mas era um trem. Era só o trem da ALL e eu corri atrás, defronte, e com atraso, porque ele me chegava adiante, pelos lados, e em todas as direções, nos tímpanos, até que no fim o encontrei, sem rumo, sozinho sobre a linha férrea, na encruzilhada da rua Deodoro com a rua Gumercindo Silva: x.
PARE OLHE ESCUTE
Parei por causa da placa proibitiva e me obriguei a olhar (se pudesse, com dez olhos) a composição que atravessava e que primeiro tinha ouvido, uma coisa de onda sonora que se tornou, rapidamente, o emaranhado dos vagões vermelhos que se traziam pelos ferros e se alastravam, mordendo trilho, sobre os dormentes. Eram uns vagões de carga em manada e que fizeram, a olhos vistos, um corpanzil de infinito, embora nos dissessem, na sigla, simplesmente América, Latina, e, por fim, Logística.
Na esquina, eu, um menino e uma mulher tínhamos parado e escutado e olhado o trem da ALL, mas o trem são organelas em organismo, não adianta fatiá-lo em bocados, porque escapa. Ele é o nunca-acabar que se remembra a partir da própria máquina finita. E o menino contava: “olha: noventa e sete, noventa e oito, noventa e nove”. Seriam cem? O que ia neles? Seria tudo? Inteiramente? O todo?
Imaginei contar ao menino da mulher a história do animal que volta, uma vez ao dia, pela mesma trilha, como a Lua, e sai do campo e vai ao cais, do cais ao campo, vindo lento pelo norte, mas ele adivinharia facilmente o meu disfarce. Não contei. Antes me perdi enumerando o tamanho do trem do todo, enquanto adivinhava as cargas, se de suínos ou de perus, se de tecidos, móveis ou compressores, e calculava, no invisível, o arroz, a soja, ou o milho, e me perdia em profecias de maçãs e peras e bananas-secas. Levam fumos? Ou transportam uma espécie de vida nova, fabricada só para exportação?
“Mãe, escuta: passou de cem” – mas a mulher continuou parada, sem olhar nada, e eu também. Éramos os três interrompidos e obrigados a esperar que tudo ali passasse, anos-luz, e o sinal autorizasse, enfim, continuarmos, puxando-nos pelos próprios passos, através do atlas, através da idade. Passar de cem significa muito: é ser um só – um uno.
Mas houve um vagão – se não o último, um único – que trazia pichada a palavra ghost. Em branco. No vermelho. Um susto. Então o trem inteiro era somente conjetura e o que aqui olhávamos não tinha sido aqui? Foram filamentos de matéria instável, sem número, sem dor? Ou ele herdou, vazio, “os verdadeiros fantasmas que são os nomes, essa duração obstinada”, como Cortázar escreveu? Pois o fantasma da palavra no vagão me explicou porque a terra dos ancestrais conservou no rio Itapocu, na correnteza, o pilar de pedra sem ponte: arrimo de ar. Carregam em cima daquele dólmen o que não tem mais carga, velocidade, temperatura, confusão? E meu avô, Herbert, que é agora poalha de pessoa, frequenta aquela estrada incorpórea?
Um último vagão e o nunca-acabar murchou, emagreceu, secou. O trem perdeu corpo, ficou só de som. Mas parar. Mas olhar. Mas escutar o quê? Parei entre os cruzamentos e a mulher e o menino atravessaram a linha sem me deixar seus nomes. No outro lado, no letreiro da loja, me anunciaram a palavra “vivo”. Fica aqui, na esquina, o lugar exato da anunciação: vivo de novo. Aqui começo minha vontade de tudo, até que também eu me torne um antepassado.
(Fotografia do autor em nossa página inicial: Ayrton Cruz)