Uma inscrição na imensidão da vida: sobre “Inscrição no deserto” de Evaldo Balbino
O texto a seguir, “Uma inscrição na imensidão da vida”, foi escrito por Divanize Carbonieri a respeito de Inscrição no deserto, o novo livro de poesia de Evaldo Balbino, lançado pela Helvetia Éditions em 2020. Para adquirir a obra, clique aqui: (https://helvetiaeditions.com/loja/inscricao-no-deserto/).
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UMA INSCRIÇÃO NA IMENSIDÃO DA VIDA
Inscrição no deserto de Evaldo Balbino é sobre o processo inexorável do tempo, que, como um rio caudaloso, leva em seu fluxo todas as coisas vivas e amadas. Esse deus da perda é evocado nessas páginas por uma voz poética que sabe estar diante de forças mais poderosas do que qualquer ação humana. Porém, a sua não é uma atitude de revolta, mas de reverência, marcada pela maleabilidade da água, que contorna obstáculos e preenche abismos. Ainda que o tempo seja “um cão faminto”, o “coração se alarga/desdobra panos e anseios,/querendo tirar da vida/o mofo do esquecimento,/o que suja sua beleza”. Da voracidade do destino, tenta-se retirar sentidos que se oponham ao apagamento de tudo o que existe.
Mesmo quando o cotidiano é vivenciado como dias de “festa e comeria”, a consciência da morte se impõe amarga: “De repente a lembrança de que à mesa,/plantada sobre a terra ancestral,/faltava o seu corpo já cansado”. A perda dos antecedentes nos lança nos “medos de orfandade”, na experiência de que afinal estamos todos sozinhos, abandonados no mundo à própria sorte até o dia derradeiro. Outros desaparecimentos, que na superfície são amiúde considerados de menor importância, também contribuem para tal sensação. No poema “Diva I”, a morte de um animalzinho de estimação acarreta a reflexão de que “as vidas/(a tua, a minha, a nossa)/são oceanos escorrendo entre dedos”.
A relação com a divindade nesse universo de desamparo é ambígua. Por um lado, Deus é sentido como um protetor sempre presente, como no poema “O salt(e)ador amoroso”, em que tanto a alma quanto o corpo sentem que podem realizar tudo o que anseiam justamente por ter essa companhia constante. Em outros momentos, por outro lado, a felicidade divina é vista como insensibilidade em face da miséria humana, já que “nada é motivo para festa”. Deus talvez sorria porque não sente na carne a dor da finitude. Se fosse feito à semelhança de sua criatura, saberia que não há razão para alegrar-se. O eu-lírico se debate com a disposição de acreditar numa transcendência, embora aquilo que observa contrarie sua vontade: O que desejo ver, olhando os mortos,/é a vida plena e imortal,/mas vejo o que veem os vermes:/apenas esta vida e nada mais,/apenas esta vida em seu final”.
Contudo, no lugar do desespero que poderia surgir após essas constatações, toma corpo uma sensualidade sôfrega, buscando sorver da vida o que ela pode oferecer antes de terminar: “Sei-me vivo assim para sempre,/úmido de lábios que fenecerão:/beijos rubros, precipícios”. O amor físico não é apenas aquele que se volta ao corpo de outro ser humano, mas também aquele que se dirige a tudo o que se apresenta para os sentidos, seja animado ou inanimado. Água, pássaros, peixes, flores, montanhas são objetos do afeto da voz que canta “as coisas mui sensíveis,/as lindas coisas (mesmo fugidias)”.
Inscrição no deserto é, na verdade, uma inscrição na imensidão, um mergulho na complexidade da vida. Emaranhar-se nos fios que compõem essa grande trama é o que resta fazer até que ocorra a consumição pelo tempo. Refestelar-se em prazeres efêmeros enquanto a consciência do fenecimento não adormece jamais. Fruindo desses belos poemas, leitoras e leitores certamente se tornarão mais cientes de tais realidades. É leitura pela qual não se passa incólume quando se tem um coração batendo.
Alguns poemas do livro
Bumerangue
No arrojo da vida
o arco se perfaz
num círculo certo.
Regressando vamos,
sendo outros mais:
ponto de partida.
Arqueados vamos
atrás das manhãs.
Tantas rugas dizem
que passou o tempo
adverso ao tempo
reto e uniforme.
Voltamos exatos
para a infância vária
nunca mais a mesma,
pois as pedras mudam
e as águas correm
de um lugar a outro.
Na infância outra
nós brincamos todos
com a morte certa.
Jogamos com ela
a bola do mundo
que gira e regira
enquanto giramos.
*
Escalada
As montanhas de Minas me amam.
Como mulheres impávidas,
me ofertam sua seiva
e suas tetas pedregosas.
Caudalosa oferenda a que me entregam,
nem leite nem mel a dissipar a sede.
Sob verdes ou ossatura à mostra,
elas não são esqueléticas,
e oblíquos são seus modos de me olhar.
Terríveis, essas montanhas
enganam-me com vozes silenciosas;
vertigens subindo a estepe;
flores que nascem desavergonhadamente,
a esmo, perdidas, em qualquer estação.
Essas montanhas terrivelmente belas,
com bocas imensas, eternas,
a me dizerem sempre pedra.
*
Inscrição no deserto
Continuou a andar cantando
e levou os meus olhares.
Gabriela Mistral, por Henriqueta Lisboa
Tão jovem e desde sempre eterno
o teu rosto de cardos se mostrava,
que em tua presença não pude
sonhar nenhuma finura.
A aspereza de tua barba
produzia pedras e montanhas
e incitava meus dedos ao degredo.
Eu não podia estar em mim
em sítios assim tão distantes,
quando entranhavam em rochas
tua seca voz e meus pés.
Não ousava deixar nos desertos
de tocar os gestos incertos
que os cílios teus perfaziam.
Os teus olhos tinham a mesma
dureza com que teus lábios
me olhavam como abismos
de escuridão e salsugem.
Entre as montanhas e as pedras
e no teu peito ofegante
se aninhava o meu corpo insano
– cada membro em descompasso.
Tuas mãos por fim me beijaram,
riscando em minha pele
esta sede excessiva.
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Evaldo Balbino (1976) é poeta e escritor. Nasceu em Resende Costa, Minas Gerais, e vive desde 1995 em Belo Horizonte. É licenciado em Letras, mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde é professor de Português e pesquisador de literatura. Realizou Pós-doutorado na Universidade de São Paulo em 2017. É membro da Academia de Letras de São João del-Rei (ALSJDR), onde ocupa a cadeira no 1. Tem crônicas, poemas, contos, artigos e ensaios de crítica literária publicados em antologias, suplementos literários, jornais e revistas acadêmicas. Assina, desde 2009, a coluna “Retalhos Literários” do Jornal das Lajes (www.jornaldaslajes.com.br). Já recebeu 23 distinções literárias, destacando-se: 3º lugar no Prêmio Edital Estímulo às Artes do Suplemento Literário de Minas Gerais em parceria com a Fundação Clóvis Salgado em 2005 (com o livro de poesias Moinho); Prêmio Braskem da Academia de Letras da Bahia em 2012 (com o livro de contos Amores oblíquos); Troféu MG Cultura em 2013 (pelo conjunto da obra publicada até esse ano); 1º lugar no Prêmio Humberto de Campos do Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ) em 2014 (com o livro de contos Amores oblíquos); 3º lugar no Prêmio Saraiva de Literatura em 2014 (com o romance Os fios de Ícaro); Menção Honrosa no Prêmio Stella Leonardos – Literatura Infantil – do Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ) em 2019 (com o livro de poesias infantis Lições de cigarra). Obras publicadas: Moinho (2006 – poesia), Móbiles de areia (2012 – crônicas), Filhos da pedra (2012 – poesia), Amores oblíquos (2013 – contos), Os fios de Ícaro (2015 – romance), Apesar das coisas ásperas (2016 – crônicas), Fantasma de Joana d’Arc (2017 – poesia). Para contatos com o autor e mais informações sobre seus trabalhos:
Blog: https://evaldobalbino.blogspot.com.br/
Site: http://www.evaldobalbino.com.br/
Ana
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