Uma narrativa e dois poemas de Janete Manacá
Janete Manacá é filha de camponeses. Com seus pais, aprendeu muito cedo a lidar com a lavoura, respeitar e amar a Mãe Natureza. Aprendeu ainda como se utilizar com sabedorias os benefícios dos quatro elementos, das quatro fases da lua e das quatro estações do ano. A vida no campo era regida sob a égide desses conhecimentos. Formada em Serviço Social, Rádio e TV e Filosofia com pós-graduação em semiótica da cultura pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é integrante do coletivo Literário Maria Taquara – Mulherio das Letras-MT e Parágrafo Cerrado. Possui vários livros publicados.
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Crianças boias-frias e as aventuras na colheita de algodão
Posso dizer com toda a potência das palavras que a vida, apesar de inúmeros desafios, sempre valeu a pena. Eu tinha 10 anos e já contribuía com o sustento da família. Havia terminado o segundo ano do ensino primário e a necessidade de sobrevivência obrigou-me a abandonar a escola. Nem o amor ao conhecimento e a súplica da professora puderam me salvar daquele momento de escolha, ainda em tão tenra idade.
Minha mãe se mantinha firme na decisão, mas no fundo eu sabia que aquele gesto doía demais tanto nela quanto em mim. Mas fome não rima com poesia e muito menos com o desejo de sonhar.
Naquele povoado eu não era a única criança a enfrentar a dureza dos desafios para poder superar o que a vida nos impunha. Era tempo de colheita de algodão nas fazendas e pagava-se por arroba colhida.
Eu, Maria Célia, irmã do Gideon e do Roque; Luzia, irmã do José Lúcio e dona do Pafúncio, cachorro de porte grande de cor branca e amarela, nosso guardião, nos encontrávamos atrás de uma máquina de beneficiar arroz. Este mesmo local aos finais de semana servia de clube, com bailes para diversão de jovens e famílias desprovidos de condições financeiras.
Era 5h da manhã e lá estávamos nós. Cada qual com sua marmita de comida, sobras da janta do dia anterior. Seguíamos intermináveis carreadores até chegar à plantação de algodão. Na inocência da idade íamos felizes cumprindo a rotina de cada dia. Três meninas e três meninos boias-frias e o cachorro de estimação.
Chegávamos ao algodoal e as maçãs de algodão abertas ainda estavam molhadas de sereno. E algodão molhado pesa bem mais que o seco. Cada qual com o fardo de ráfia que levara no dia anterior para casa o amarrava na cintura, colocava um chapéu de palha aba larga na cabeça e escolhia duas “ruas” para iniciar os trabalhos.
Era como uma gincana, quem acabasse primeiro de um carreador ao outro vinha de encontro aos amigos. E novamente voltávamos com mais duas “ruas” de algodão. E assim eram todos os dias até o término da colheita.
Os pés de algodão se perdiam em meio aos pés de picão e carrapicho. Ao final da tarde quando o sol se punha cada componente do grupo de amigos já estava com um fardo e meio ou dois de algodão que pesava em torno de 90 a 120 quilos. Esperávamos o fiscal pesar todos os fardos de algodão que se encontravam no carreador e colocá-los sobre a carreta do trator para ser armazenados no paiol da fazenda.
Após todo esse ritual de procedimentos, acompanhado por nós, um por um, raspávamos a roupa com uma faca para ficar livre dos picões e carrapichos que mesmo sobre as nossas roupas pinicavam os nossos corpos.
Com fome, os nossos franzinos corpos cansados ainda tinham ânimo para brincar de pega-pega. Na volta para casa subíamos no trator sem a carreta, o fiscal que também era o motorista ria e cantava conosco. E assim era todo início de noite sob a luz da lua e das estrelas, seis crianças e um cachorro seguiam o seu destino com a pureza da inocência que sequer sentia o peso da responsabilidade.
Essa era a única realidade que conhecíamos. Éramos felizes. O brilho dos nossos olhos se confundia com o brilho do sol. Vivíamos o momento presente sem perspectiva de futuro. Tínhamos muitos desejos, mesmo sem ter aprendido a sonhar. Tem gente que nasce marcada pra morrer. Sobreviver às intempéries da existência não é privilégio de muitos.
Ao chegar em casa, sobre a chapa do fogão havia água quente para o banho, arroz, feijão, polenta e salada. Tudo feito com tempero e amor pelas mãos da minha sagrada rainha.
O tempo seguiu o seu curso e só restaram recordações que hoje, além de sonhos, tecem lágrimas, dores e saudades. Um forte sentimento de gratidão transborda em meu coração. Por todas as vezes que aquela mulher, agora em outra dimensão, iluminou os meus caminhos nos momentos de escuridão.
(Do livro: Tecelã de memórias)
*
No Reino das Ondinas
Estava grávida do quarto filho
A gestação sempre fora difícil
Era tão frágil como um passarinho
Em tempos laboriosos
Sob a luz de lamparinas
E a benevolência da lua cheia
Sentiu os primeiros sinais
Um bebê crescia em seu ventre
Tomou um barco e partiu rio afora
Final de tarde sob o sol sonolento
Não conseguia apreciar a paisagem
Com a fisionomia turva de dor
O barco deslizava sobre as águas
Durante horas e horas de agonia
Seus olhos fecharam sem ver a luz do dia
Partiu com o seu nenê
Dois anjos na escuridão da noite
Foram ser felizes no Reino das Ondinas
Ainda hoje sentada à beira do rio
Fecho os olhos e ouço-a cantar
Para a criança em seu ventre repousar
(Do livro: Outono para além da janela)
*
Sabedoria ancestral
um rosto com rugas profundas
estampava o porta-retratos
como uma estrela a guiar os meus passos
havia tanta sapiência naquela face
olhar intenso e profético
uma devota curandeira do mundo
com as ervas entre as mãos
lábios entreabertos em oração
brandura e silêncio no coração
os cabelos entrelaçados na trança
pendiam sobre o ombro direito
e repousavam no sagrado seio
do corpo robusto brotava sabedoria
exercida nos desafios de todos os dias
e edificada na alma de cada filho
a fé iluminava tão atentos olhos
como quem compreende os mistérios
e desvenda a complexidade da vida
diante do altar eu fiquei a contemplar
a sacralidade daquele semblante familiar
e fui em paz preparar a terra para semear
(Do livro: A SABEDORIA DOS CAMINHOS: poesia em tempos de pandemia)