Uma resenha de Alexandra Vieira de Almeida
Inicia-se agora uma série de resenhas em que autoras cadastradas na Livraria do Mulherio das Letras resenham as obras umas das outras. A resenha abaixo é de autoria de Alexandra Vieira de Almeida sobre o romance Duty free de Sílvia Schmidt.
Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo o mais recente A serenidade do zero (Penalux, 2017). Tem poemas traduzidos para vários idiomas.
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo. Formou-se Letras na FATEA, Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política na USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos, ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014, cria a editora para livros eletrônicos a Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free. Possui trabalhos inéditos em todos os gêneros literários em temática contemporânea-bilíngue, crítica e universal. Impressos ou em novas mídias. Participa como mediadora e curadora em Festivais de Cinema e Literatura com temas contemporâneos como transculturalidade e interseccionalidade. Além dos temas ligados à Arte e Cultura é educadora e consultora em sustentabilidade.
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Duty Free, um romance híbrido, de Silvia Schmidt
Silvia Schmidt, no seu romance Duty Free, faz um exímio exercício de experimentação com a linguagem, exercendo o trabalho inventivo do escritor que mescla vários recursos estilísticos para abrilhantar sua obra com riqueza e desenvoltura. Logo na primeira parte do livro, percebemos isto, pois Schmidt no início do livro utiliza-se de datas e avisos, como num diário fragmentado e reduzido, em que pequenas frases em sequências com datas sobre familiares e amigos de algum personagem que ainda não se revela neste primeiro capítulo, mas que depois, de maneira surpreendente e impactante, nos é mostrado pelas vias e caminhos do texto. Temos assim, logo no começo um diário ficcionalizado com um narrador em terceira pessoa. E a mudança é o ato originário, o que se busca através da personagem Sofia, a protagonista da história.
O livro é permeado de coisas do dia a dia, como o cotidiano é um momento avassalador e epifânico na sua obra, revelando dentro dos acontecimentos triviais, a sublimidade da vida complexa e profunda das personagens. Cenas cotidianas, como tomar café e ir a um passeio noturno, ganham ares de beleza lírica, fazendo das pequenas coisas algo perfeito em sua grandiosidade meteórica. O livro, escrito de forma bilíngue, português/inglês, o que já engrandece o reino das possibilidades linguísticas na relação autor-obra-leitor, fala do tema das viagens e seus deslocamentos físicos e linguísticos. A obra se centra em dois personagens principais, a brasileira Sofia e o inglês Richard, que terão uma história de amor com muita vitalidade e energia. Em Duty Free temos um trabalho intenso das particularidades das regiões, onde as personagens circulam, com um microscópico trabalho de contextualização histórica e geográfica, fazendo de seu livro um entrelugar entre o factual e biográfico ao literário e ficcional. Terry Eagleton, no seu belo livro Teoria da literatura: uma introdução, já mencionava como a díade fato x ficção não é proveitosa, havendo intercâmbios entre ambos.
Como um gênero de livro de autoficção, sua obra se encaminha entre a mistura do experiencial e do fictício, do real e do imaginário, entremesclando vários estilos de livro, como uma metaficção, um romance existencial, entre outros posicionamentos pluriestilísticos. Como alertou o grande teórico Luiz Costa Lima, o gênero autobiográfico é um gênero híbrido que permeia tanto a vida quanto a ficção. E Silvia Schmidt a partir de sua obra utiliza os fios do esquecimento e dos lapsos da memória, que eu diria serem os vazios textuais para atuarem num campo permeado pelo imaginário e pela criação quando dentro do livro se utiliza de um trabalho em que cria “um labirinto textual”, ao Sofia criar um roteiro de cinema que é uma analogia com sua vida. Temos, assim, a ficção dentro da ficção, criando-se, dessa forma, de um momento de elaboração linguística muito original, utilizando-se para isto de elementos de sua própria matéria experiencial, sua vida.
Sofia, uma mulher inteligente e que não é frívola tem de lidar com o valor monetário do mundo, desdizendo a aurora dos tempos atuais, buscando a amor acima de tudo, acima dos valores mundanos e fáceis. Os impactos das personagens envolvem o leitor, que vivencia experiências inusitadas e sugestionáveis ao longo do livro. A psicologia deles se apresenta nos fios da narrativa. Temos as finas letras dos espaços internos e externos. Como as viagens exteriores influenciam no processo de autoconhecimento e viagens internas e catárticas, se expandindo em processos epifânicos magníficos. As palavras são bem escolhidas para a caracterização das personagens, não utilizando nada em excesso e sim com precisão de acordo com as situações. No início do romance, temos o tom descontraído e alegre. É contagiante, com grande força propulsora forte a todo motor e vapor. É a energia grandiosa que emana das personagens, que para além de um erotismo qualquer, é elevado para a “vitalidade” radiante de uma experiência para além do corpo físico. A língua inglesa não seria uma barreira entre Sofia e Richard, sendo que ela passa por um processo de aprendizagem linguística ao longo do livro, fazendo o leitor notar sua evolução ao longo do romance.
As percepções das personagens não aparecem no momento e de forma abrupta a nos chocar. Só depois de uma análise aprofundada feita com maestria por Schmidt com relação às personagens. Estas têm reflexões sobre as ações e fatos do enredo. Logo no início, temos uma relação feita pelos gestos e não pela voz: “Pareciam amigos íntimos logo no primeiro encontro, nada de afetos, e como ambos não se comunicavam no verbal com fluência, só os poucos e sensíveis sinais os aproximavam”. Era algo feito com a intuição, com uma aura intelectiva que unia os seres por outro estado que ultrapassava o meramente verbal para se adensar na matéria das gestualidades. Além dos gestos, temos o cosmopolitismo do livro, pois encontramos neste romance uma via de mão dupla nos olhares que se cruzam. O olhar do estrangeiro e o olhar de dentro. Richard como um conquistador vai desbravando a nova terra, o olhar do outro, do estrangeiro, do que não nos é familiar é enaltecido, assim como o olhar de Sofia, uma brasileira diante do desconhecido. Assim, o conhecimento do novo é a chave-mestra do livro, tanto do novo que está fora de nós, como o que está dentro do ser e precisa ser descoberto e exposto no terreno da referência. O poder do cenário é fantástico, como num quadro tudo é percebido pelos olhos do narrador não deixando nada escapar.
A linguagem da vitalidade erótica é forte na sua obra, em que tanto em português quanto em inglês, ambos trocam suas impressões nas suas línguas. A língua parte do corpo humano e se casa com a língua no sentido gramatical. Sofia recebe a cultura de fora e fica conhecendo como é um estrangeiro, os dois se descobrem como em “ilhas de afeto”. Mas no meio do entusiasmo e da alegria inicial, aparecem as dores, as perdas e sofrimentos das personagens, fazendo o leitor se adensar num terreno movediço e profundo. Silvia trabalha com a potência das línguas, tira delas a essência de dizer algo, de significar e, por isto, seu trabalho metanarrativo é excepcional. Temos um roteiro dentro da narrativa, que não s espelha apenas as vidas de Sofia e Richard, mas da própria autora, como numa floresta de espelhos em progressão. Como num script de cinema, a vida de Sofia se adensa, reunindo os diversos tipos de linguagem, num hibridismo perfeito e minucioso.
Temos histórias dentro de histórias como numa espiral, elas vão se introduzindo e se alongando. O feminicídio é uma destas espirais e será marcada por Schmidt para fazer uma crítica social à nossa cultura atual movida pelo machismo e pela violência. Mas o poder do amor, do espiritual não viciado pela religião como instituição e a força da comunicabilidade são as grandes energias que direcionam Sofia para outro campo. A relação entre Sofia e Richard esquenta e esfria, como nos altos e baixos dos relacionamentos. Sofia tem um filho e um ex-marido violento e agressivo com ela. Richard por vezes é frio, distante como um típico inglês. Além disso, ele é avarento e tem um grande interesse por motos e bicicleta, que ele coleciona e dirige. Por vezes, ao longo do romance, somos assaltados por reações inesperadas das personagens por um fato novo e inquietante, fazendo de seu livro algo que nos surpreende a todo momento, deixando o leitor sem fôlego e admirado. Além da crítica ao feminicídio, Schmidt apresenta a partir de Sofia e seu filho Pedro, de apenas 7 anos, uma crítica à sociedade com sua péssima alimentação, pois além de Pedro estudar numa escola construtivista, “era uma criança sadia e feliz…” Ela trabalhava como produtora cultural e Richard como moto guia. Por outro lado, além das personagens principais, as secundárias têm grande participação nas vidas dos protagonistas, desvendando alguns mistérios, como a empregada de Sofia Nana, a babá crente que ajuda no descobrimento dos sonhos de Sofia.
Como uma realidade autossuficiente, o sonho tem grande importância na narrativa, pelo seu poder de realização. A epifania na vida de Sofia é revelada nos sonhos que se mostram na vida presente. É aqui notória a influência de Clarice Lispector, com seus livros que deslindavam esta experiência epifânica, que vai além do que podemos explicar racionalmente, revelando o jogo da “intuição”, de que tanto falava o filósofo Henri Bergson. São grandes influências e citações na obra de Schmidt, dialogando com a tradição e a ressignificando, como Clarice, Shakespeare, a Bíblia, entre outras. A arte seria a saída para a epifania, pois a independência e a liberdade que ela dá, é diferente do âmbito doméstico com suas frustações e rotina. A reforma que ela faz na casa é o símbolo da própria reforma que ela faz na vida, conjugando as vias dos espaços exteriores e interiores. Schmidt possui um belo conhecimento da gastronomia, das viagens, dos espaços geográficos, do cinema, da literatura e artes em geral, assim como da arquitetura e das decorações. Sua cultura é vasta e exemplar, fazendo de seu livro um mosaico cultural. Sofia passa por ritos de passagem em vários momentos na narrativa, assim como Richard, principalmente no final do romance. No contato da natureza do sítio, onde ela se afasta da cidade, temos um momento harmônico, a busca da solidão e do silêncio. Temos, assim, uma hipersensibilidade, um insight e intuição na sua existência, fazendo se seu romance algo existencial, com a análise do ser e seu processo de autoconhecimento, cujo clímax se dá no desfecho do livro, no enfrentamento entre Sofia e Richard.
Para além da “esquizofrenia econômica”, o título Duty Free representa uma ambiguidade. Por um lado, temos o poder de compra destes produtos, com uma variedade imensa de mercadorias que podem ser adquiridas. Por outro lado, por ser livre de taxas e impostos, aponta para uma liberdade monetária jamais vista. Essa expressão representa tanto a prisão como a liberdade de Sofia, não apenas no que se refere às suas emoções como sua independência econômica. Nos itinerários das viagens e dos deslocamentos somos tragados por uma profusão de produtos sensórios a partir de um “orgasmo visual”, que nos aprisiona ao mundo do mercado. Nos EUA, Sofia é tomada por esta avalanche de informações e é tomada pelo espetáculo da satisfação sensorial. Mas o grande motivo de Sofia não é adquirir bens materiais, mas buscar a liberdade espiritual e uma consciência amorosa que se eleva para além da materialidade de nossa sociedade frenética e corrupta. Sofia faz uma crítica ferrenha à nossa cultura da mídia que representa a linguagem do excesso televisivo da violência, com a alienação da catástrofe, como vimos no ataque das Torres Gêmeas, que comparece no seu livro. Enquanto o mundo está um caos e cheio de problemas, comemoramos o Ano Novo com fogos e champanhe. Assim como a corrupção velada que envolve o meio cinematográfico com seus conchavos, sendo que Sofia passa por dificuldades para o financiamento do seu roteiro. É nesta teia que aprisiona, que Sofia convive o tempo todo, buscando se desgarrar dos fios da sociedade hipócrita e corrompida. Aivilis, a personagem do seu roteiro é seu alter ego e seu espelho para ela continuar escrevendo e tentando.
Na queima simbólica de seus papéis velhos, temos o passado deixado para trás, em busca de uma nova vida, uma outra pessoa é projetada para a frente, para o futuro. O livro trabalha o tempo todo com os símbolos e analogias como as acrobacias das belas baleias brancas que levam para o terreno da liberdade da natureza e sua vitalidade que permeia todo o livro. Portanto, seu livro que nos mostra os choques e diferenças culturais, este espaço da externalidade, também nos faz enxergar as viagens na interioridade do ser com suas neuroses e fantasmas. A descoberta do mundo também se enaltece pela descoberta de dentro, na caverna dos sentidos mais complexos e profundos. Que sua obra se enalteça cada vez mais com a leitura e a crítica de novos leitores. E que para além das referências literárias utilizadas pela autora, num trabalho primoroso de ressignificação da memória (Clarice Lispector, Shakespeare, Jung, por exemplo), seu romance Duty Free seja referência também para novos autores pelo seu estilo ousado, múltiplo e original, unindo vários gêneros, estilos e artes.