Uma resenha de Carlos Roberto Rodrigues Santos (Professor Leão)
Carlos Roberto Rodrigues Santos, o Professor Leão, nasceu em Peabiru (PR) em 1967. Formado em Letras, leciona literatura e redação em Cuiabá há 27 anos. É Diretor Geral do Colégio Maxi. A resenha abaixo, sobre o livro O leitor como metáfora de Alberto Manguel, foi escrita como parte das atividades do Curso de Escrita Criativa ministrado por Luiz Renato Souza Pinto.
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Ler ou não ser
Em nosso mundo letrado, lemos para nos capitular, para compreender a nós e ao mundo. Por meio da leitura redimensionamos a nossa existência, atribuímos novos significados ao que já foi e projetamos nas palavras grafadas o sentido da vida que virá.
No livro “O leitor como metáfora”, Alberto Manguel apresenta três metáforas para aquele que, encorajado pelo ato de ler, identifica os códigos linguísticos na construção de significados das palavras: o leitor como viajante; o leitor na torre de marfim; o leitor como traça de livros. Essas metáforas, na perspectiva do autor, sintetizam a figura do leitor ao longo da história no imaginário da sociedade, desde os escritos da epopeia de Gilgamesh (séc. XVIII a.C.) até os e-books da contemporaneidade.
Manguel engendra vários livros para argumentar as tipologias metafóricas do leitor. Na primeira parte temos o leitor como aquele que viaja no livro que lê, transpõe territórios e recria mundos a partir da imaginação. Viajamos na vida, logo viajamos na leitura. “Viver, então, é viajar através do livro do mundo; e ler, abrindo caminho através das páginas de um livro, é viver, viajar pelo próprio mundo”.
Para Dante, “o mundo imaginário, exatamente como o próprio mundo físico, pode ser mapeado e explorado pelo leitor. O livro é um mundo através do qual podemos viajar porque o mundo é um livro que podemos ler”. Embora não citado por Manguel, aliás nenhum autor brasileiro é citado em sua narrativa, Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas” também apresenta a vida como uma viagem a ser empreendida.
O leitor contemporâneo, também é um viajante, um navegador que, muitas vezes sem bússola, percorre a imaterialidade dos pixels de um livro. “Ao ler no meio digital estamos, predominantemente, perdidos em labirintos movediços”. Tal conceito está ancorado na ideia de que ler em meios digitais compromete nossa capacidade reflexiva e, como uma nau à deriva, perderemos “a consciência de nossa passagem pelo mundo e consciência de nossa passagem pelas páginas de um livro”.
Na segunda parte, Alberto Manguel trata da metáfora do leitor refugiado na “torre de marfim”. Essa comparação ganha força no século XIX com Montaigne: “Pobre do homem (para o meu gosto) que não tenha lugar algum em sua casa onde possa estar a sós consigo”. Muito tempo antes disso, a ideia de isolamento em busca de reflexão e autoconhecimento já existia. Demócrito se isolou numa choupana para descobrir o sentido do mundo. É certo que essa imagem provoca ainda hoje seus dissabores.
O isolamento pode ser visto, também, como um esconderijo para não enfrentar as lutas renhidas da vida. É com grande mestria que Manguel cita “Hamlet”, de Shakespeare, para demonstrar que o dramaturgo “não era um homem de universidade, o conceito da torre de marfim, da qual Hamlet reluta em sair, era algo a ser escarnecido”. Murilo Mendes também se posicionou contrário àqueles que viviam refugiados da realidade: “Os poetas da minha terra/ são pretos que vivem em torres de ametista”. Isolados da realidade circundante, esses poetas não eram capazes de promover transformações propostas pelo intelectual engajado de Gramsci.
Na última parte temos “rato de biblioteca”,o devorador de livros é comparado à traça. Manguel narra a figura do Louco dos Livros, surgida no séc. XVI. É o “leitor onívoro que confunde acúmulo de livros com aquisição de conhecimento, e que termina convencido de que os eventos narrados entre uma capa e outra são os eventos do mundo real”. O “Dom Quixote”, de Cervantes, exemplifica essa criatura. Depois de devorar novelas de cavalaria, torna-se um cavaleiro errante, no qual o real e o imaginário se confundem ao longo da narrativa.
A personagem Emma Bovary, de Flaubert, vive a experiência de leituras devorando páginas românticas aplacava seu tédio diante de um casamento sem a excitação das narrativas. Tornou-se infiel, vivendo uma realidade que parecia sair dos livros. Todavia, o mundo criado por Flaubert é cruel e inviabilizará um final feliz para a pobre moça que se alimentou dos sonhos da ficção.
É claro que Manguel, devorador de livros, como vários de nós, não coaduna com a ideia de que ser uma traça precisa ter somente conotação negativa. “Somos criaturas leitoras, ingerimos palavras, somos feitos de palavras, sabemos que palavras são nosso meio de estar no mundo”. É por meio delas que nos reconhecemos, que nos tornamos mais humanos e os livros lidos, devorados seus parágrafos e páginas, permitem-nos construir nossa identidade.