Uma resenha de Clarissa Loureiro
Clarissa Loureiro tem os livros de contos Invertidos e Mau Hábito publicados, além do romance Laurus. É doutora em Literatura e leciona na UPE.
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A cartografia emocional-espacial feminina: entre baratas e sertões
O romance “Coração Madeira” apresenta a trajetória de uma mulher brasileira-alemã a partir de suas relações com espaços e objetos. Entre esses espaços, há uma forte relevância metafórica da casa que se identifica com o sentido poético defendido por Bachelard, quando afirma que: “a casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmo”. No romance, essa casa poética se realiza inicialmente a partir da imagem da casa amarela. Ela se identifica com a visão de Bachelard de casa natal “fisicamente inscrita em nós”. Na casa amarela, existem universos particulares que corroboram para a transição identitária da narradora “Filha do meio” para a condição de “Coração Madeira”.
Na narrativa, a casa amarela era a casa paterna “de madeira, grande, segura, amarela, constantemente amanhecendo”, tal qual a metaforizada por Adélia Prado nos versos: “ Uma ocasião/ meu pai pintou a casa toda/ de alaranjado brilhante/ Por muito tempo moramos numa casa/ como ele mesmo dizia/ constantemente amanhecendo”. A relação entre os textos se torna ainda mais significativa se se compreende que a associação amarelo/amanhecer vai além da cor da casa, mas viabiliza o lugar de aconchego infantil onde se cria um “grupo de hábitos orgânicos” que no romance se estendem desde as modas cantadas pelo pai à voz de veludo da mãe e da avó, consolidando a realização de asas maternas femininas que se encaixarão ao corpo e à identidade da narradora. Nota-se, portanto, que a casa amarela se inscreve na narrativa como um elemento de memória que se repete insistentemente na fala da narradora, sendo, depois, ressignificada em outras casas que também colaboram para a sua construção identitária. Entretanto, o fator dessa casa que deve ser ressaltado com ainda mais cuidado é o seu elemento de estruturação de madeira.
A madeira se torna o fundamento físico e emocional do desenvolvimento do romance. É na casa de madeira paterna no sul do país que brotam as primeiras baratas, as quais se repetem na outra também de madeira no coração da Amazônia. A identificação entre dois espaços opostos do Brasil é o sentido dado à relação feminina com as baratas, evidenciada no conto de Lispector “A quinta estória”, de Felicidade Cladestina, quando é reiterada a reclamação em cinco possíveis estórias: “queixei-me de baratas”. A queixa que acompanha a personagem narradora de “Coração Madeira” vai além do aspecto asqueroso que rege as baratas, mas se agarra ao seu sentido metafórico de “adversidade” que todo o feminino deve enfrentar para se fortalecer. Em ambas as casas, “A Filha do Meio” encontra-se diante do patriarcado que se impõe como uma “barata” que se impregna em sua pele initerruptamente. Todavia, nesses dois espaços existem manifestações discursivas femininas que minam o que se propõe a ser um discurso hegemônico. Na casa amarela, há o “sobrado rosa” que se comporta no romance como se fosse uma casa feminina particular dentro da própria casa. As paredes rosas, os pôsteres de artistas, as gravuras com paisagens idílicas são parte de uma voz feminina ecoada no espaço além da tirania dos deveres e posições impostos a cada mulher hierarquicamente dentro da família. Por outro lado, a penteadeira das irmãs mais velhas se consagra como o primeiro “objeto biográfico” na narrativa que corrobora para a realização de uma tradição feminina, além da masculina imposta na casa amarela.
Ressalta-se que o feminino no romance se dá nas sutilidades que começam no olhar-se e arrumar-se diante de um espelho de uma penteadeira e ganha sua maior intimidade no caderno carmim que acompanha a personagem entre-espaços e entre-tempos. E é na casa da Amazônia que esse caderno se torna a voz de resgate da voz da avó e da mãe que influenciará a “Filha do Meio” a abandonar a condição de esposa e professora de crianças pobres e adaptadas a um ambiente de árvores cotidianamente derrubadas para tornar-se “Coração madeira”, dona de sua própria história. Nesse sentido, há a transição da personagem da condição de “filha do patriarcado” para a de “geradora do matriarcado”.
Coração Madeira é a mulher que se encontra como geradora de filhos, netos e perpetuadora de vozes femininas que sobrevivem na árvore, que sobrevive à constituição da casa. Defende-se que, nessa etapa do romance, há um discurso implícito na narrativa que só se reverbera na sua conclusão, o qual se pauta na crença de que os homens, durante séculos, construíram casas culturais patriarcais, usando os corpos de madeira de muitas mulheres como seus sustentáculos, mas essa mesma madeira se fez presente como árvore em silêncio, criando seus filhos e netos a partir de suas próprias tradições. Algumas mulheres foram mais fortes e se impuseram como arquétipos. É o caso da avó da personagem, mulher secular de um típico “Cem anos de solidão”, que se sentou ao lado marido numa igreja, também de madeira, onde lados femininos e masculinos se estabeleciam rigidamente e sobreviveu a todas as páginas desse romance em que a mulher do século XXI se emancipa totalmente quando encontra a sua verdadeira árvore como metáfora de uma existência guardadora de muitas existências, mas nunca iguais, pois a mulher jamais é a mesma.
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço; Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 2.ed. São Paulo: Marins Fontes, 2008.
WALKER, Marli. Coração Madeira. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2020.
Lucinda persona
PRIMOROSA resenha sobre a experiência de ler “Coração Madeira”.