Uma resenha de Felipe Braga
Felipe Braga é doutorando em Sociologia, filósofe de graduação. Escreve sobre arte contemporânea e matemática, e trabalha com pesquisa de mercado e opinião.
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Medeia, de Eurípedes
A melhor leitura de Medeia, tragédia de Eurípedes, é a contrafactual. Sabemos todos que o tema do texto é a vingança. Mas a vingança, per se, não alcança a escala do desfecho da peça. Sem outras considerações que aprofundem a experiência subjetiva da personagem, o maior movimento do texto – aquele pelo qual ele é, ainda hoje, lido e debatido – deixa de acrescentar nova camada de sentido, de complexidade, àquilo que já sabíamos: Medeia quer se vingar de Jasão. De minha parte, penso que a vingança é menor do que Medeia, uma chave insuficiente para desdobrar sua construção pessoal mais interessante.
Não há a mais remota dúvida: Medeia, de fato, se vinga de Jasão. E se vinga de Jasão ao matar ambos: a mulher de Jasão, e o pai da mulher de Jasão. O pai da mulher de Jasão é o rei de Corinto. Trata-se, portanto, de um regicídio.
Poucos crimes alcançam a amplitude coletiva de um regicídio. Mata-se o indivíduo, mas a ferida que mata o rei desorganiza todo o arranjo de poder da cidade.
Ao matar o rei de Corinto – amado por Corinto – Medeia pune uma coletividade. A vingança de Medeia contra Jasão, ao matar sua mulher e o pai de sua mulher, é muito bem sucedida. Ela alcança a escala de contundência da pólis.
Se Medeia tivesse apenas matado o rei, o primeiro cidadão da pólis, sua vingança contra Jasão estaria completamente realizada.
E completamente esquecida: Medeia conquistou a eternidade porque matou seus dois filhos. A tragédia só é enorme, inesquecível, intolerável, monstruosa, porque Medeia matou suas duas crianças, filhos de Jasão.
Não porque matou o rei de Corinto. Matar os meninos é um gesto maior do que a vingança: a vingança contra Jasão já estava consumada na morte horrenda de sua mulher – a cena do corpo se dissolvendo em sangue no abraço desesperado do pai, e este envenenado pelo próprio abraço ensanguentado da filha, é a antessala trágica do texto. Porque o cume assassino da tragédia acontece depois da vingança.
Medeia se vingou de Jasão e, depois de se vingar, matou seus dois filhos.
Duas idades mortas precocemente pela inteligência ambiciosa da mãe. Entender tudo o que o texto não teria sido, se tudo o que ele tivesse alcançado fosse a vingança, é o elemento contrafactual que amplia a economia de sentido do enredo. Que significam essas duas mortes, se a vingança já estava completamente realizada?
A beleza de um texto maior contém duas palavras, se essas duas palavras alterarem todo o regime de significado da obra: Medeia traiu a própria família para ajudar Jasão a capturar o velino de ouro, seus estratagemas contribuíram significativamente para que a empreitada conquistasse termo bem-sucedido. Jasão reconhece isso.
Mas pontua: embora a ajuda de Medeia tenha desempenhado papel determinante na concretização do objetivo, ele, Jasão, não deve nada a Medeia – e, sem que sopese qualquer débito de gratidão que os vincule, ele se sente livre para abandoná-la em benefício da filha do rei de Corinto. Na perspectiva de Jasão, sua própria imortalidade é, em si, a parcela última de retribuição que cabe a Medeia, que a resgata da vala comum em que todos somos esquecidos. A escala orgulhosa do temperamento de Jasão está toda neste arremate, um dos mais agressivos – e bonitos – do texto: ao conquistar a fama para si, Jasão lhe deu a eternidade.
Evitarei minúcias de somenos;
Não desmereço teu pequeno auxílio,
Mas não comparo ao que me deste o que eu,
Salvando-me, te propiciei. Explico-me:
[…] Celebridade, alguém recordaria
Teu nome em tua terra tão longínqua?
Não quero ouro em casa, nem cantar
Hinários, mais bonitos do que Orfeu,
Se for para gozar a sina cinza.
(Tradução de Trajano Vieira)
Sina cinza, definição poética para o esquecimento, angústia universal de desaparecer sem deixar de si qualquer vestígio.
Repare que, se a convergência narrativa do texto resolvesse sua forma trágica na vingança, ela faria de Jasão o protagonista da personalidade de Medeia. A natureza da vingança – mesmo quando bem-sucedida – traz em si uma assimetria entre aquele que se vinga, e aquele contra quem se vinga. Em benefício deste: a subjetividade de quem se vinga é dominada pelo império do outro, o ódio inaugura uma fórmula de dependência que é a mais visceral maneira da submissão.
Penso que Medeia é muito mais ambiciosa do que vingativa. Medeia, ao transformar a maternidade em infanticídio, transforma, por extensão, a qualidade trágica do ato, aquele que, em sua dimensão enorme e horrenda, recusa o tempo do esquecimento: matar as crianças não é um ato de vingança, matar as crianças é um ato de eternidade. O traço profundo de Medeia é a coragem para impor os termos do próprio sofrimento, já não um caráter que padece, mas aquele que, no limite mais perturbador do protagonismo, age. Na chave da vingança, a ancoragem da ação é externa à ambição protagonista, ela é o gesto que olha para trás, para a ação que o engendrou; quando Medeia mata os próprios filhos, ela ultrapassa a vingança, e se torna a crueldade antecedente, ela é a razão de ser do movimento trágico. Portanto, um gesto prospectivo que, em razão da própria extremidade, vira duração.
Se ela tivesse apenas matado o rei – se vingado, uma vingança enorme e bem-sucedida –, Medeia não existiria. Matar as crianças não se vinga de Jasão, matar as crianças torna o gesto memorável, altera a envergadura da ação: a crueldade é a pulsão literária que eterniza o texto e confere à personagem sua dignidade arquetípica, e não a vingança. Para muito além da vingança, o gesto ultrapassou Jasão: feriu a todos.
De modo que a eternidade de Jasão é submetida à eternidade de Medeia. A vingança, repito, é o motivo que faz com que Jasão domine a personalidade de Medeia; a crueldade, ao contrário, é o motivo que faz com que Medeia domine a personalidade de Jasão. Literalmente: Jasão oferece sua dor a uma Medeia alada, triunfante, na apoteose de sua cena final. E a eternidade de Medeia tem traços claramente humanos, não é uma eternidade lendária e quimérica das provas de heroísmo, mas uma eternidade constituída no limite de nossa própria deformação, aquela fronteira última de convivência que, quando preservada, faz com que a existência do outro seja possível e tolerável. Medeia supera esse limite insuportável, e ao fazê-lo, transforma a escala da crueldade em gesto estético, tão profundamente repulsivo que exige para si a mais transparente contemplação.
Há qualquer coisa de sublime no gesto que não transcende a si próprio: quando o Duque de Gloucester mata seus dois sobrinhos, filhos de Eduardo IV, para conservar para si o trono da Inglaterra – desenvolvimento de Ricardo III de Shakespeare –, a violência da ação cumpre um mandato de ambição individual: é um meio, um instrumento para atingir um objetivo maior; quando Medeia mata seus dois filhos, a violência da ação é uma composição puramente literária, já não cumpre qualquer função no percurso da narrativa: o gesto é seu próprio referente, é a forma trágica essencial. Existem dois discursos que, à intenção detratora ou inclinação simpática, buscam enraizar a estética do gesto numa chave que o ultrapassa, duas interpretações antagônicas que fazem de Medeia qualquer outra coisa que não ela própria: justificar a desumanidade de Medeia, porque Medeia teria agido por ciúmes de Jasão, é transformar a personagem em uma extensão da traição de Jasão; abominar a desumanidade de Medeia, porque Medeia teria agido contra sua natureza materna, é transformar a personagem em uma extensão da inocência de seus filhos. Medeia nem é maternidade, nem é matrimônio, Medeia é um prazo, aquele que não se esgota na própria biografia: Medeia é lembrada.
A desumanidade de Medeia
A forma tragédia, na sua aparente simplicidade, na sua estrutura de essenciais que percorre os grandes motivos humanos, cumpre um inesperado movimento de catarse: a forma tragédia é um alívio. Não nos termos aristotélicos, em que o desenvolvimento do enredo dá vazão a sentimentos de intensidade represada. E cuja exacerbação, impetuosa e francamente necessária, fica autorizada mediante a segurança do envolvimento estético – uma forma de intensidade protegida, portanto. O tipo de catarse que eu tenho em mente é de outra natureza: a tragédia é um alívio, porque ela expõe a fragilidade de um segredo mutuamente compartilhado, sem que tenhamos o sofrimento da verbalização; expõe uma parcela inacessível de subjetividade que encontramos – ou escondemos – no sigilo do eu para consigo, reciprocidade de um vínculo que não se realiza entre quaisquer ambos, mas entre enredo e todos. A personagem Medeia é um outro radical. Medeia, em uníssono, é empurrada para fora de nossas próprias fronteiras de possibilidade, é qualquer coisa de alheio, de alteridade absoluta; perverso, monstruoso, covarde: adjetivações que, em razão do crime, são Medeia para além de nosso próprio alcance. Atribuir um nome à falha de caráter, rechaçar a crueldade na sua condição de atributo humano, tanto quanto qualquer outra de nossas melhores qualidades, exige que não seja humano quem alcança esse limite último e perturbador. Exige que Medeia não conserve qualquer parentesco de solidariedade para conosco. De modo que nossa relação para com Medeia, no plano mais essencial da representação de um outro absoluto, configura mais do que uma reação superficial à crueldade; é, antes, um comentário de vaticínio à própria virtude, uma recusa em reconhecer em si a intimidade do erro, da perversão, da falha de caráter. Relação que se desdobra, ao fim e ao cabo, em um ponto de vista: o último degrau da abjeção é sempre um outro. O que a tragédia faz é trazer para dentro do enredo a distância desse ponto de vista, que cumpre uma absolvição antecipada de minha própria natureza. Na era da hipertrofia da memória, perdemos definitivamente o direito ao esquecimento, nossas melhores e piores ações permanecerão acessíveis ao imediato da prédica on-line, memória que já não se encerra no estreito do grupo de relações; memória fossilizada, ubíqua, universal. Nossos erros e qualidades pertencem a todos; nossos erros, porém, costumam ser mais persuasivos, são manifestos de distância com enorme potencial de submissão, controle e disciplina: poucas coisas são tão prazerosas quanto o extermínio do erro do outro, esteira de solidariedade em que a falha alheia é o nosso primeiro laço. Quem é acusado de cometer um erro, nega tê-lo cometido; quem o acusa de estar errado, tem o benefício momentâneo de não ter tido os próprios erros descobertos. O sujeito inescrupuloso da própria correção moral é, à partida, um personagem constantemente submisso, corpo dócil à beira do poder mais sutil; o contexto de hiperexposição, de sobrevivência intransigente do passado, deposita outro tanto de acanhamento à neurose do esconder, personalidade tolhida, frágil.
Matéria político-moral em que se discute a reintegração humana das nossas falhas, reencontrar o lugar social do erro na gestão da convivência – se não por outra razão, por esta: o erro é universal. E mais universal do que o erro, é não admitir sua naturalidade; ele que nos faz profundos, a parcela honesta do que não devíamos ser; a canalha de nossa pior fração que só o melhor mérito consegue reprimir. Quando reconhecemos a humanidade de Medeia, reconhecemos, por extensão, nossa própria complexidade.