Uma resenha de Jefferson Dias
“Oito do sete, de Cristina Judar, e o êxito do excepcional” é uma resenha de Jefferson Dias, autor dos livros de poesia Último festim (Multifoco, 2013) e Silenciosa maneira (Medita, 2015, mediante ProAC). Tem poemas, contos, traduções e resenhas publicados em periódicos e portais de literatura, tais como euOnça (editora Medita), Opiniães (USP), Caliban, Literatura & Fechadura, Germina, Ruído Manifesto, Ponto Virgulina, TriploV e Gazeta de Poesia Inédita. Ademais trabalha na tradução do poema “Briggflatts”, de Basil Bunting.
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Oito do sete, de Cristina Judar, e o êxito do excepcional
Deu no jornal: Cristina Judar sabia do risco que corria com Oito do sete (Editora Reformatório), nas palavras dela, “um livro nada convencional”. Quer parecer curioso esse modo de noticiar: em que consistiria a possibilidade de insucesso? Porque postas nesses termos, as coisas pressuporiam a mesmice; quer dizer, se o “livro nada convencional” é azarão, podemos depreender que o júri teria sempre em conta o plenamente convencional – e qual seria? De maneira que para a apreciação contaria mais cartilha que méritos.
Na noite do dia cinco de novembro de 2018 foram anunciadas as vencedoras do Prêmio São Paulo de Literatura, um dos mais importantes do Brasil, já em sua décima primeira edição. Dentre as galardoadas estava Judar, e seu “nada convencional” Oito do sete sagrou-se o melhor romance escrito por estreante com mais de 40 anos. A outra estreante contemplada, nesse caso com menos de 40, foi Aline Bei, com O peso do pássaro morto (Editora Nós). Já Ana Paula Maia venceu na categoria Melhor Livro do Ano, com Assim na terra como embaixo da terra (Editora Record). O São Paulo, assim como o britânico Booker Prize, destina-se exclusivamente a romances, e é a primeira vez que premia três mulheres simultaneamente.
É auspicioso que, nos últimos anos, mais autoras tenham sido reconhecidas em um meio em que predominam os homens. Entrementes é também animador que um “livro nada convencional” receba prêmio de relevo. O escritor João Anzanello Carrascoza adverte, na orelha de Oito do sete: “estão ausentes de suas páginas as artimanhas e facilidades da literatura monocromática que se tornou hegemônica entre nós” – e isto precisamente aponta para o que possa haver de inopinado. Interessantemente, Judar, em entrevista acerca de seu volume de contos, Roteiros para uma vida curta (Editora Reformatório), assevera: gosta de “respeitar as convenções, e, ao mesmo tempo, ver o que dá ao tentar subvertê-las”.
Pois vejamos. No que toca ao plano do conteúdo, o tema é, em um sentido amplo e à primeira vista, corriqueiro, “convencional”: Oito do sete é, em suma, um livro sobre a busca que o sujeito empreende por seu lugar no mundo, o que acaba por implicar o desvelamento, ou antes, a construção de uma identidade. A especificidade o torna mais interessante: as protagonistas formam, em algum momento, um casal e as paisagens são, via de regra, internas.
A vida, sabemos bem, jamais dirá respeito a uma prossecução ordenada de fatos, dispostos linearmente de acordo com um sistema causal e cronológico fechado, que determine relação óbvia entre eles. Nossa ânsia por fazer que tudo signifique é que acaba por dar a ela a aparência, ainda que precária, de algo compreensível, mesmo previsível. Para o que nos interessa aqui, é precisa a observação de Ian Watt: “o principal problema ao retratar-se a vida interior é a escala temporal”, porque o ramerrão do indivíduo revela enxurro ininterrupto de pensamentos, sentimentos etc.; e as formas literárias mormente tendem a “ser uma malha temporal muito aberta para conseguir reter sua atualidade”. Ainda segundo Watt, é só através dessa “consciência minuto a minuto” que o leitor pode participar plenamente da existência do personagem de ficção. Vem a calhar a lembrança de Joyce que, com Ulysses e Finnegans Wake, funda, via psicanálise, maneiras de narrar que redundarão em tramas pouco ou nada submetidas a uma congruência, a um sistema de linearidades – revolução pela qual Judar não passa incólume.
É no plano expressivo, portanto, que deparamos a excelência. O monólogo interior se afigura como única possibilidade ao romance de Judar, de forma que a estrutura é escorada em quatro capítulos, cada um correspondente a uma voz diversa: as amantes Magda e Glória, um serafim e Roma, a cidade. A primeira dá pista decisiva sobre o que está em jogo: os fios “eram tantos que não compunham uma narrativa ou trama decifrável, apenas meio traçados caminhos”.
O que faz de Oito do sete um livro pouco ou “nada convencional” é a incorporação da disposição caótica da vida à própria economia do romance, incluindo-se os esforços para conferir sentido às experiências. Não se trata de ideia original, a despeito de ser sempre espirituosa; todavia é importante pista o fato de que o resultado pareça estranho, “nada convencional” inclusive para a autora, mesmo após Joyce ou, para dizer de conterrâneos dela, após Cornélio Penna, Dyonelio Machado e Lúcio Cardoso.
E aqui uma matéria se apresenta fecunda: há alguma sorte de vício instituído na crítica literária brasileira desde, pelo menos, os anos de 1960, pelo qual fica sobrevalorizada a literatura dita engajada, de linguagem solar e coloquial. Não é despiciendo o fato de o período ensejar um modo de ver afinado com a reação – já que o que estava no horizonte era ditadura. Um possível desdobramento disso é a obliteração a que são submetidos autores mais comprometidos com a introspecção. O caso do famigerado romance (da década) de 30, produção ficcional brasileira de inspiração realista e cariz social, fornece exemplos: grandes autores como os já citados Cornélio Penna e Dyonelio Machado não tiveram a consideração que mereciam porque não se adequavam às convenções.
Em resenha de 1939, Mário de Andrade tece algumas considerações a respeito do segundo romance de Penna, que bem poderiam ser extrapoladas para outro cenário: “para a novelística nacional a psicologia ainda permanece naquela aritmética adiposamente satisfeita de si, pela qual dois e dois são quatro. Apesar dos seus exageros e nebulosidades […], o princípio psicológico de que Cornélio Penna se utiliza, vem lembrar aos nossos romancistas a hipótese riquíssima de dois e dois somarem cinco. Ou três. E esta me parece a principal contribuição deste romancista”.
É significativo o fato de Mário, autor canônico, chancelar, ainda que com não poucas reservas, outro que, em última análise, acabou esquecido. Também não podemos deixar de notar que as “artimanhas e facilidades da literatura monocromática” apontadas por Carrascoza evocam a tal “aritmética adiposamente satisfeita”. A partir do que, poderíamos tentar retomar o questionamento inicial: qual seria o livro convencional? O romance de temática social e de expressão simples e linear? Tendemos a crer que sim.
O caso é que o romance de Judar não se ajusta, a rigor, a essas diretrizes. À primeira vista, Oito do sete não é um romance social, tampouco é simples e linear do ponto de vista estilístico. Se podemos chamá-lo um romance psicológico, isto se dá não porque haja desvelo em requintar a caracterização psicológica de personagens, mas porque Judar empreenda trabalho com a linguagem que compreende certa fluidez própria do pensamento, jogos de palavras, associações, onirismos – um modo tributário de Joyce e Woolf, mas também da poesia.
É a própria Cristina Judar quem nos diz, ao falar sobre seu processo de escrita, que precisa “do som da língua, do encadeamento, de harmonias, de imagens subliminares, de entidades passando aqui e acolá”. No último capítulo de Oito do sete, intitulado Roma, encontramos prosa poética da melhor espécie, profusão de imagens tais como “meus dentes de pedra mordem as carnes flácidas do firmamento”. Nele, a cidade que lhe empresta o nome ganha voz e avalia a ação dos homens sobre ela – os epitetados “insetos cósmicos polivalentes vacilantes” – da seguinte maneira: “seus atos e passos ditam as minhas rugas. Destemperam as minhas nesgas ríspidas, de olor vegetativo e incólume às duras opressões do mundo, são elas cavernas-moradias do viver soturno transcendental decassílabo flamejante, como as lanças do rapaz louro alado que sai por aí e por lá com pinta de cupido crescido”. Chama a atenção, no trecho, a tensão rítmica obtida por meio de assonâncias e aliterações. A fagulha primordial acontece com a contiguidade das vogais tônicas em “atos e passos”, o que desencadeia sibilos e trotes de consoantes (“seus”, “passos”, “opressões”; “atos”, “ditam”, “destemperam” etc.) que se mantêm constantes até findarem na rima “cupido crescido”. O jogo de, por assim dizer, permuta entre “ditam as minhas rugas” e “destemperam as minhas nesgas ríspidas” é engenhoso.
O derradeiro capítulo é, aliás, o acme: faz as vezes de epílogo, e também funciona como metáfora desse tipo de composição a que aludimos antes. Se a narrativa é, ela mesma, fragmento, os capítulos também o são, e cada um, por sua vez, constitui-se de micronarrativas fragmentárias. Em “Roma” há explicitação dessa dinâmica; trata-se de uma estética, por assim dizer, da ruína: “no Pantheon, não há mais memória cravada em pedra. As únicas lembranças estão apegadas à atmosfera que se desloca por ali em ondas de turistas e biscates. É como um Mal de Alzheimer a afetar uma construção antiga sobreposta por novos signos, descaracterizada de seus sentidos originais”. Tal proposição remete àquela de Freud, em O mal-estar na civilização, que para tratar da conservação na vida psíquica, compara-a justamente a uma Roma imaginária, na qual, por meio de uma justaposição espacial, poder-se-ia admirar, ao mesmo tempo, o Coliseu e a Domus aurea de Nero. Contudo Judar parece querer complexificar a questão: “as ruínas desvinculadas de suas origens sofrem de síndrome arquitetônica de memória esfacelada. O mundo é uma ruína. O mundo é uma ruína sem memória”.
Assim, se Oito do sete, um livro “nada convencional”, é laureado, algumas hipóteses se apresentam: ou se trata mesmo de um romance social por excelência e, portanto, convencional de acordo com as balizas aqui expostas; ou houve ruptura de paradigma e agora gostam do romance psicológico; ou, com a suspensão das rotinas críticas, é reconhecido o romance que insira a realidade brasileira em uma dinâmica que implique o indivíduo como ser atravessado por dilemas e passa-se a entender o valor da problemática sociopolítica tematizada por meio do crivo psicológico; ou, ainda que não queiramos recair em reducionismos, é demasiado precária a costumeira classificação da prosa romanesca em romance social e romance psicológico.
Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, publicada em 1967, já preferia tratar o assunto tendo em vista a figura do herói problemático e seus conflitos relativamente às estruturas da sociedade burguesa. Apesar disso, perdura a tendência, na qual incorre o próprio Bosi, em sobrevalorizar as obras romanescas tidas como sociais. Nesse sentido, prevalece a suposição de que a atenção dispensada a um romance como Oito do sete parece indiciar alguma renovação da crítica literária brasileira contemporânea.
É bom lembrarmos o fenômeno Clarice Lispector e sua predileção pelos fluxos de consciência, os prêmios concedidos a Hilda Hilst, autora experimental em muitos sentidos, e, mais recentemente, o livro Amora, de Natalia Borges Polesso, vencedor do Jabuti de 2016 na categoria contos. De todo modo, a mais recente edição do Prêmio São Paulo implica movimento contra-hegemônico, quer dizer, não é exceção a boa literatura produzida por autoras brasileiras; a exceção sempre consistiu no seu reconhecimento. E mais: significa muito que, no Brasil de hoje, país que dentre crises, atravessa uma que é a da própria linguagem, venha à tona, vitorioso, um livro cujo enredo se desenvolva por meio de linguagem tão vigorosamente lavrada.